quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Histórias ao vento: "Aldeia da roupa branca"

António Delgado's Photos - Wall Photos
"Há horas que tirei esta imagem já pouco comum em Portugal. Parece retirada do filme a Um modo de vida que foi muito comum das mulheres portuguesas do campo: o lavadouro. Lugar onde a vida da aldeia era revista: trocava-se e levava-se informação. O equivalente da taverna para o homem!".

Parece que sinto o cheiro do sabão "Clarim", e vejo as rodilhas velhinhas (algumas já com buracos), branquinhas, a marinar na lixívia com OMO.
Faziam parte dos meus brinquedos uns bonequinhos de plástico que saíam nesse detergente. Eram uns pequeninos, verdes escuro... figuras de guerreiros. Havia também umas balancinhas de várias cores….
Ai como eu gostava quando a minha mãe comprava uma caixa nova!....
Eu e o meu irmão, púnhamos à sua volta, numa ansiedade incrível, a ver o que ia sair. Se o boneco fosse repetido, ficávamos tão chateados… que até chorávamos (“Mãe, compra outra caixa!”).
Mas se o boneco estivesse em falta… que alegria era a nossa! E era certo sabido, que naquele dia, eu e o meu irmão nos íamos pegar. Ambos queríamos ser os primeiros a querer colocar o nosso pequeno guerreiro, em frente ao terrível batalhão por nós idealizado, naquele mundo de miniaturas do OMO.
De manhãzinha, pouco depois do sol nascer, lá ia a minha mãe, as minhas tias e mais umas vizinhas para a "Levada" lavar a roupa!...
Umas bacias enormes à cabeça, o balde no braço... e ainda havia 1 ou 2 mãos ocupadas comigo, com o meu irmão e os primos.
Pelo caminho, o meu narizito ficava congelado e as faces vermelhitas... primeiro era o frio e o sono. Depois o calor de tanto andar!
Chegávamos à "Levada".
A água era límpida... e o barulho dos regatos fresco...
Enquanto a água se manchava de sabão... as conversas iam nascendo ("Oh tia Laura, atão o tio Manel ontem disse ao meu Tone, que as suas pitas parideiras estão com o piolho?"). As conversas desenrolavam-se e no meu mundo de criança eu imaginava-me peixinho dentro daquela represa a comer as bolinhas de sabão...
Enquanto as bolinhas de sabão se faziam, ouvia-se um “cuac, cua”, dum pequeno sapo saltitante e mais lá à frente, num galho seco dum cedro, um “pirripiupiu” dum pintassilgo que nos vinha visitar.
A roupa era lavada. As conversas eram postas em dia. Havia a companhia das vizinhas e das parentes... e nós, crianças, brincávamos ao "faz de conta" com muita fantasia e felicidade.
Chegávamos a casa e as roupas eram estendidas na corda, outras a corar no chão...
Ao fim do dia, o pai chegava cansado... e ia até à taverna, falar com o tio Manel e outros amigos… Falavam do tempo, do preço do vinho e da batata, contavam anedotas picantes...
Não havia televisão, nem Powermen... mas havia o contacto com a natureza, conversas das coisas pequenas e simples do dia-a-dia, o desabafo dos problemas e a exteriorização dos sentimentos.
A Tia Laura estava sempre pronta para fazer uma canja quente quando a mãe estava doente, ou um leitinho creme com canela, se um de nós apanhava um resfriado.
O tio Manel, era o braço direito do meu pai. Ajudava-o no campo, na apanha da uva e quando havia obras em casa.
Enquanto a mãe lavava roupa na "Levada", as crianças realizavam-se nas suas brincadeiras cheias de sonhos e fantasias. E as mulheres confortavam-se sempre com uma palavra amiga "Deixa p'ra lá mulher... a vida é mesmo assim! Melhores dias virão!", "Já dizia a minha avó: não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe!"
Na “Levada”, umas vezes ouvia-as a conversar, outras a barafustar, outras a chorar… Mas o que gostava mesmo, era de as ouvir a cantar (fados antigos)!...
O mundo todo se concentrava ali naquele lugar.
Só ali naquela represa havia vida.
Era um ponto de encontro. O encontro no lavadouro onde tantas vezes se faziam milagres.
A "Levada" era um lugar mágico!...

Maria Cristina Quartas

Nota do autor: embora exista algumas pequenas coincidências deste texto com a vida pessoal da autora, este texto é apenas uma ficção baseada em muitas realidades da vida.

sábado, 24 de outubro de 2009

O desenvolvimento intelectual/cognitivo ao longo do ciclo vital: breve reflexão

Embora desde a Grécia antiga se hajam formulado diversas teorias sobre o desenvolvimento cognitivo e intelectual (a aprendizagem), as mais salientadas na educação contemporânea são a de Jean Piaget e a de Lev Vygotsky.

Tanto um como o outro postulam diferentes estádios de desenvolvimento, segundo as diferentes formas de pensamento cognitivo.

Segundo Piaget, a inteligência constrói-se progressivamente ao longo do tempo, por estádios ou etapas constantes e sequenciais, ou seja, de ordem invariável (sequencia regular).

Este autor apresenta-nos assim, 6 estádios diferentes:
- Estádio sensório-motor (dos 0 aos 18/24 meses);
- Estádio pré-operatorio (dos 2 aos 7 anos);
- Estádio das operações concretas (dos 7 aos 11/12 anos);
- Estádio das operações formais (dos 11/12 aos 15/16 anos).
Defendendo uma posição construtivista/interaccionista: as estruturas do pensamento são produto de uma construção contínua do sujeito que age e interage com o meio, tendo um papel activo no seu próprio desenvolvimento cognitivo.

Os estudos de Lev Vygotsky postulam uma dialéctica das interacções com o outro e com o meio, como desencadeador do desenvolvimento sócio-cognitivo. Para Vygotsky e seus colaboradores, o desenvolvimento é impulsionado pela linguagem. Eles acreditam que a estrutura dos estágios descrita por Piaget seja correcta, porém diferem na concepção de sua dinâmica evolutiva.
Enquanto Piaget defende que a estruturação do organismo precede o desenvolvimento, para Vygotsky é o próprio processo de aprender que gera e promove o desenvolvimento das estruturas mentais superiores.
É com base nestes estádios de desenvolvimento intelectual/cognitivo que o ser humano é construído intelectualmente ao longo de toda a sua vida.

Um outro autor contemporâneo também, muito interessante, é Erick Erickson. Este autor enfatiza a importância da interacção da pessoa com o meio que a rodeia. Para além destas fases faz referência às etapas de desenvolvimento ao longo da vida, ou seja, ao ciclo vital.
Influenciado por Freud a sua doutrina assenta na ideia de que o percurso existencial de cada indivíduo gira em torno da construção de um sentimento de identidade.
Apologista da teoria dos estádios, fala-nos que estes se desenvolvem pela existência de uma crise psicossocial ou conflito. O indivíduo ao interrogar-se sobre a sua identidade em cada um dos estádios alcança uma resposta diferente. Em cada estádio os indivíduos devem realizar uma tarefa diferente para passarem para o estádio seguinte.
Deste modo, refere-se a mais fases do que os outros autores. Mais concretamente, às fases: jovem adulto, adulto e idoso. Para cada uma destas fases são descritos os conflitos com que se debatem os indivíduos e a forma como os podem resolver.

O interesse particular de Piaget e Lev Vygotsky, e outros autores, nestes estudos nos primeiros anos de vida do indivíduo, prende-se com o facto de se considerar que os primeiros anos de vida são os mais relevantes e a base de todo o processo procedente do pensamento posterior no ser humano.

Na minha modesta opinião, e apesar de não discordar com a ideia base do interesse destes estudos, considero que ao longo da vida dum indivíduo, existe muito mais estádios para além dos 4 ou 6 apontados pelos autores. Ou até mesmo, para além dos 3 apontados por Erick Erickson.

É um facto também, que existe muito pouca literatura sobre estudos nas fases posteriores à adolescência.
Constatei pessoalmente isso numa pesquisa bibliográfica que tive que fazer para um estudo que efectuei na Faculdade de Psicologia – Universidade do Porto, sobre a 3ª idade.

Penso que ao longo da vida, passamos por variadas fases de desenvolvimento intelectual. Não sei se será um processo de sequência invariável ou não. Mas pela elaboração da estrutura do pensamento e dos esquemas mentais dai resultados, considero a fase adulta e 3ª idade fantásticas para áreas de estudo.

Pena que não haja mais investigação sobre isso, para que nas nossas Universidades pudesse haver um programa mais aprofundado e completo que contemplasse todo o ciclo vital, e não apenas a infância, em cadeiras específicas da Psicologia do Desenvolvimento.

Maria Cristina Quartas
Outubro/2009

A importância dos Amigos no nosso crescimento


Uma das coisas que mais me marcou recentemente foi eu me ter apercebido, a certa altura dentro de mim, uma mudança repentina. Se não foi repentina, foi de repente que me apercebi que estava diferente.

Muitas das vezes me questionava como era possível certas pessoas aguentarem alguns problemas tão difíceis e enfrentarem certos desafios bem complicados!

Naturalmente crescemos e vamos mudando as nossas formas de pensar e de ver o mundo. Valores e conceitos vão-se renovando e dessa forma assim, vamo-nos “actualizando” neste labirinto da vida.

Talvez a maioria das pessoas não se apercebem destas mudanças interiores porque não fazem uma auto-analise mais aprofundada, ou porque essa mudança vai sendo feita duma forma mais lenta (pelas circunstancias da vida) ou porque ainda não chegou o momento da necessidade dessa auto-reflexão.

Sem qualquer rigor científico, e com base naquilo que penso ser o desenvolvimento cognitivo/intelectual no indivíduo, estruturei as minhas ideias soltas em algo mais conciso.
Considerando apenas a fase da vida adulta, penso que as coisas possam ser esboçadas (mais ou menos) da seguinte forma:

Até aos 35-40 anos, poderíamos dizer que nos encontramos numa fase de formação. Fase essa, em que apenas absorvemos informação e nos apetrechamos dos instrumentos necessários para trabalhar o sentido da vida.

Só depois dos 40 até aos 50-55, entramos então, numa fase de estágio, em que começamos a aplicar os conhecimentos até ai adquiridos e a moldar as interpretações das coisas com base nas nossas estruturas até ai criadas.
Nessa fase, há certamente, necessidade de ajustar e refinar alguns conceitos e pensamentos, de forma a tornar mais compreensível o significado e sentido das coisas. E por conseguinte, mais adaptados às realidades da vida.
Se por um lado, tentamos adaptar as coisas com base nas nossas estruturas, por outro, há também necessidade de refinar e ajustar (por sua vez) essas mesmas estruturas internas.
Esta fase, embora com tendência à simplificação das coisas, é por sua vez, a mais complexa e que exige maior grau de aplicação e de esforço racional e inteligível. Por isso, é uma fase de reflexões profundas, de reconstruções, interpretações e de avaliações dos (pré-)conceitos, valores, princípios, etc...
Atingir o equilíbrio e a sensação da serenidade interior, passa a ser um dos objectivos a traçar essencialmente nesta fase.

Só depois, dos 55-65, entramos numa fase mais amadurecida da vida. A experiência vivida no seu sentido prático e as teorias que fomos formulando para a explicação das coisas que questionamos, permite-nos ter um sentimento mais arrojado e mais aptos a afrontar e suportar as intempéries da vida. Nessa altura, talvez já sejamos capazes de enfrentar qualquer situação duma forma serena e tranquila, porque sabemos que possuímos os instrumentos de trabalho necessários e que somos capazes de utilizá-los duma forma adequada. Predominando fortemente a assertividade e a ponderação.

Talvez, só depois dos 65-70, sejamos capazes de pegar nisto tudo e começar a saborear o verdadeiro sentido da vida. Sermos capazes de distinguir duma forma consciente e justificada o "trigo do joio". Sermos capazes de reter e esmiuçar o que realmente é importante e é proveitoso.

O período mais aprazível de se viver, seria (idealmente) a partir dos 70-75. Altura em que nos sentiríamos com maior força e vontade de viver. Irradiados pelo prazer do conhecimento de toda esta magnífica aprendizagem na maior e verdadeira Universidade – que é a Escola da Vida, sentiríamos também a responsabilidade de transmitir o que aprendemos. Duma forma humilde, natural, e simplificada.

Naturalmente que, ao reconhecermos as potencialidades que possuímos e a consciência da importância do conhecimento da vida, o nosso olhar perante a Natureza e o Mundo que nos rodeia, seria certamente algo que eu considero de mais maravilhoso e sublime.

Desta forma tão individualizada, que é no fundo o trabalho em cada um de nós, umas vezes alunos, outras professores, vamos prosseguindo nesta nossa existência não só para se aprender a viver, mas também para sabermos morrer.

Por tudo isto, há necessidade de aproveitar cada minuto, cada oportunidade que a vida nos apresenta. Pelo simples facto, de ela ser tão efémera na amplitude do próprio conhecimento.

Compreender a importância de nos conhecermos mais e melhor, nesta projecção intrínseca e extrínseca e compreender a necessidade da partilha e o valor daquilo que designamos por Amizade.

Partilhar com os outros, acaba por ser, a forma mais inteligente de estar na vida. Dar/receber numa perpétua busca da satisfação plena de que vale a pena viver apesar de efectivamente sermos individuais num trabalho que é da responsabilidade de cada um de nós.

E é ai que entram os Amigos, através da linguagem dos afectos, na partilha da dor e da angustia geradas neste nosso crescimento. Por outro lado também, para nos fazer lembrar, que a vida de tudo nos dispõe para seremos felizes - com os pequenos momentos de satisfação na realização das nossas conquistas e nos desafios ultrapassados.

Maria Cristina Quartas

Eles são…

Eles são...
duas chamas divinas,
são cristalinas,
São raios de luz.
São duas almas caridosas,
são graciosas,
as que te conduz.
São duas bolas de cor,
são cheias de amor,
que enchem a minha alma.
São duas estrelas,
são belas,
e que a tudo acalma.
São dois diamantes,
são brilhantes,
os teus olhos azuis.

Maria Cristina Quartas

A Vida

Bruma suave a leva
ao sabor do vento
na mais doce canção.
Desliza
e
rodopia,
passa rente pelo chão.

Lentamente se levanta
e
dança.
Baila livre
sem destino,
sem direcção.
Vive
e
sonha,
desfrutando com todo o prazer
a sua aventura
de livre viver.

Já cansada
não baila…
não dança…
fica pairando no ar.
Vivendo
sozinha com a solidão,
perde-se da coragem
e da fantasia.
Mas da sua liberdade… NÃO!

Maria Cristina Quartas

Canto da fidelidade

Serei fiel ao meu Amigo.
Estarei sempre ao seu lado nesta jornada.
Se preciso for, com ele subirei a mais alta montanha,
caminharei a mais longa estrada.

Serei fiel ao meu castigo.
Terei por ele o meu pago,
se assim o destino quiser
neste Mundo de pecado.

Serei fiel à Natureza.
Nunca a misturarei com infernos
ou com céus.
Foi nela que nasci e nela ma transformei
- Apenas um pouco de Deus.

Serei fiel ao amor.
Acreditarei nele com veracidade.
Mesmo sendo ilusão
para mim será a realidade.

Serei fiel ao Sol… à Lua…
Serei fiel à minha própria loucura.
E sendo fiel
à própria infidelidade,
serei sempre louca até à eternidade.

Maria Cristina Quartas

domingo, 18 de outubro de 2009

A virtualidade nos afectos (Texto adaptado por Maria Cristina Quartas)

A paixão virtual é um estado alterado de consciência, em que a pessoa concentra as suas energias numa fantasia. Apaixona-se pelo sentimento, pela felicidade, pelo sonho, muito mais pela imagem virtual do que pela pessoa real.
Há que reforçar que na paixão não se vêem os defeitos ou os problemas referentes ao outro, vêem-se apenas o estado de graça e o prazer... essencialmente dos sentidos.
Principalmente nesses casos de paixão virtual, as pessoas apaixonam-se mais por si mesmas, pela sua capacidade de seduzir e de se envolver, do que pelo outro. Não estando em contacto directo com o outro, a paixão que acontece é apenas um reflexo: "eu apaixono-me por estar apaixonado", "eu apaixono-me por uma sensação" em oposição a "eu apaixono-me por alguém".
Virtualmente, não existem pessoas feias. Basta ser simpático, que a nossa imaginação já transforma o outro em bonito, agradável, sensual. A sensualidade está nas palavras, não nas atitudes reais.
Todas as mulheres são bonitas e sensuais e todos os homens são bonitos e carinhosos, e somamos no outro tudo o que gostamos, porque é isto que procuramos no outro. É por essa imagem que acontece a paixão. Apaixona-se pelo que o outro "aparenta ser", não pelo que é. E através da comunicação virtual é muito mais fácil preservar o ego e mostrar apenas o que se decide mostrar, escondendo aquilo que apenas o convívio “desmascara” e põe a nu. E aí, quando as máscaras caem, é que se conhece a verdadeira pessoa e podem acontecer as desilusões.
A diferença fundamental com os encontros reais é que é possível manter a imagem por mais tempo. Por outro lado, os encontros virtuais são muitas vezes tão intensos, podem ser tão ricos, que depois de alguns contactos entra-se geralmente numa intimidade que a maioria das pessoas não se permitiria nos contactos pessoais.
O facto de as pessoas não se exporem visualmente facilita ainda mais a abertura das emoções. Ao contrário dos encontros pessoais, em que a espontaneidade conta muito, nas mensagens via Internet a pessoa pode repensar as palavras, usar citações de outros que acha interessantes para a sedução ou elaborar o texto de forma a surtir maior efeito. A máscara, inevitavelmente, forma-se.
Na vida real, onde a aparência física é o principal chamariz (principal porque a “cotação” sócio-económica também e ainda tem bastante peso relacional) e só tem contacto com o lado animal, intelectual, depois com o emocional e afectivo... e só depois, às vezes, com o físico. Já nas relações virtuais as pessoas procuram e encontram companhia, cumplicidade, carinho, não importando muito a apetência para o sexo ou condição económica do interlocutor. Os limites físicos (corporais e de distância) não pesam.
Assim, atrevo-me a deixar dito que a internet é o local onde mais existe a possibilidade das "almas gémeas" se encontrarem, onde se abrem as emoções, onde se encontra sempre carinho e aceitação. Nunca foi tão fácil aproximar-se das pessoas. As "amizades" surgem de um dia para o outro, basta estar aberto a elas.
No entanto, algumas pessoas aproveitam-se do anonimato para criar uma personagem, ou seja, mostrarem-se conscientemente diferentes do que são.
Esse diferente nem sempre quer dizer uma mentira: muitas vezes a pessoa mostra-se como gostaria de ser, mostra o seu lado reprimido: o tímido transforma-se em eloquente, o feio em galã, o velho em jovem, o gordo em elegante. Embalada pela fantasia, a pessoa vende uma imagem ideal, a qual, enquanto está travestido, chega a acreditar ser. Este acaba por se tornar o principal motivo das decepções no momento do encontro pessoal: cria-se uma expectativa de que o outro seja aquilo que eu fui construindo no meu imaginário, por aquilo que eu fui apreendendo (ou que quis apreender), essa imagem nem sempre corresponde à realidade ou raramente corresponde à verdade.
Essa imagem ideal também pode ruir antes do contacto pessoal, por causa de uma "fofoca", ou de pequenos problemas de relacionamento on-line. O problema maior, em geral, não está na pessoa que transmite a sua imagem, mas na que gera falsas expectativas…
Contudo, o impensável também acontece, a paixão de uma via pode ser compartilhada e assumida por inteiro pelas partes, e a verdade ser mais "verdadeira" que a fantasia ou a ficção. A paixão pode tornar-se simplesmente em sentimento sólido e ultrapassar o inicialmente possível, pode encontrar terreno fértil no interlocutor e cultivar um significativo amor, ou uma sólida e apaixonante amizade. Não é o facto de ser inicialmente virtual e encaminhada num só sentido que impede, corta ou reduz a necessária vontade de amar e ser-se amado, pois esta função faz parte integrante dos novos conceitos de necessidades básicas de todo o moderno ser humano.
A fantasia, embora em diferentes graus faça parte do jogo da sedução, e consequentemente dos afectos, estimulada pela necessidade, induz os actores a partilharem mais do que simples desejos, imagens ou realidades, mas a trazer um contributo objectivo para uma relação que mesmo fortuita e fugaz, não deixa de satisfazer as necessidades de cada um em particular e dos dois no seu pleno. A fantasia é por isso o rastilho que, quer na internet, quer na vida real, faz explodir corações de amor ou ódio. E assim define a carga dos afectos, positiva ou negativa.
E se assim é, então, a vivência fantástica de um EU ou de um TU, necessariamente terá de partir da fantasia, que sendo ela subjectiva e por isso de alguma forma virtual, contribuirá para acalmar os corações e apagar muita da solidão que os atormenta. A troca de afectos funcionará, por isso, sempre nos dois sentidos: dar/receber e vice-versa.

Maria Cristina Quartas
Outubro/2009

(Do original: Leila Urioste Rosso “ O Perfil dos Usuários da comunicação Mediada por Computador: uma abordagem psicológica”, Brasil 2005.)

Sempre vivo no meu coração este grande Amigo e Mestre - Dr. António Madeira Pina

TEMPOS VÊM, TEMPOS VÃO

Os tempos vêm. Tempos vão
Com todos os seus contrastes.
Velhas folhas cairão...
Nascerão outras nas hastes.
Airosa e sedutora,
Risonha na sua dança,
Se hoje é encantadora,
Amanhã nem semelhança.
Que faço eu nesta vida?
Pergunto de quando em quando.
Se tiver missão cumprida
Não estacionei, eu ando.
Quem os instintos domina
Mat'rialidade calma.
Aureola sua alma
O espírito não declina.
Copo abaixo, copo acima,
Ciclo do alcatruz da nora.
Vida do Homem se aproxima.
Quando há má hora ou boa hora.
Nesta vida a correr
De desértica miragem,
Não há tempo de o ser
Pensar que não tem paragem.
O velho já alquebrado
É jovem envelhecido.
Recordações dum passado
Já de há muito fugido.

ANTÔNIO MADEIRA PINA
Poeta Português.

Homenagem ao Dr. António Madeira Pina

Deixou-nos o Dr. Madeira Pina. A luta que travou com a doença de que padecia teve o seu fim no dia 13 de Agosto de 2005. Partiu tendo já completos 90 anos, festejados no dia 13 de Fevereiro do corrente ano. A sua partida deixou em nós e, estou certo, em todos os companheiros de Doutrina uma enorme saudade e um profundo vazio. O Dr. Madeira Pina foi presidente da Filial do Porto do Racionalismo Cristão, cargo a que se entregou de corpo e alma desde o momento que, em Portugal, foi permitida a liberdade religiosa e o direito de associação. Mas mesmo antes, durante o período em que a Filial Porto esteve encerrada pela polícia política, reunia-se com companheiros sigilosamente, em sua casa, onde tinha consultório, afastando desse modo a ideia de ajuntamentos, de modo que a Doutrina continuasse sempre viva até melhores dias, o que só veio a suceder com a Revolução de 25 de Abril de 1974.Foi então que o Dr. Madeira Pina, com a prestimosa colaboração de sua esposa, a ilustre e admirável dona Amélia Xavier Pina, encetou diligências no sentido de legalizar a Filial Porto, elaborando os seus estatutos, que, após submissão às autoridades judicial e administrativa competentes, foram aprovados no seguimento de autorização daquelas, passando, então, a Filial a existir como Associação. Assim, o Centro Redentor do Porto reabre suas portas ao público, ultrapassados certos obstáculos impostos pelo obscurantismo, e graças, sobretudo, ao empenho, à inesgotável energia, tenacidade, aguda inteligência e dinamismo do casal Madeira Pina. As magníficas doutrinações explanadas pelo Dr. Madeira Pina, nas sessões públicas, em breve, alcançaram notoriedade e motivaram a afluência do público que, quer por curiosidade, quer por problemas de ordem espiritual, enche o salão das sessões. Respirando firmeza de convicções, o Dr. Madeira Pina vê-se rodeado por companheiros que se oferecem para colaborar nas sessões públicas, dentre os quais alguns são preparados e incitados a presidir. O Dr. Madeira Pina é, também, uma referência incontornável da expansão do Racionalismo Cristão em Portugal. Pois é graças ao seu permanente contacto com os correspondentes que começam a surgir, ao seu espírito de solidariedade, que alguns, rapidamente, evoluem para Filiais do Centro Redentor. Foi o que sucedeu com as Filiais Lisboa, Viseu, São João da Madeira e Aveiro. E esta entrega à Doutrina racionalista cristã foi efectiva até à doença que o reteve em casa e o vitimou. Profissionalmente, o Dr. Madeira Pina foi um distinto e prestigiado médico da cidade do Porto, e por sua enorme dimensão humana e científica era muito querido e respeitado pela sua ampla clientela. Homem de cultura e notável sensibilidade poética, deixou obra (poesia), inédita ou publicada, mas limitada à oferta a amigos. Recheadas de sentimento, nelas ele perpassa com mais ou menos transparência os valores e princípios Racionalistas Cristãos. Senhor de vasta biblioteca, doou grande parte dela à Biblioteca Luiz de Mattos, da Filial Lisboa, muito a enriquecendo. O momento que nos leva a escrever é naturalmente de tristeza, para nós e para todos aqueles, que são muitos, que partilham o mesmo sentimento de perda de um amigo, que foi simultaneamente um grande líder do Racionalismo Cristão em Portugal. É tempo de exprimir o nosso respeito e apresentar nossas solidariedades públicas à excelentíssima família, prestando esta singela, mas sentida homenagem ao amigo, ao ilustre companheiro, ao homem de cultura, que sempre foi.

(Antonio do Nascimento Gomes)

Metade


Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.

Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que triste.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corroe por dentro seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflicta em meu rosto o doce sorriso que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei...

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a plateia e a outra metade, a canção.

E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor e a outra metade... também.

(Oswaldo montenegro)

Os Amigos

Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos.
Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles.
A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, eis que permite que o objecto dela se divida em outros afectos, enquanto o amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade.
E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!
Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências...
A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem.
Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida.
Mas, porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.
Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos.
Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não declare e não os procure.
E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.
Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado.
Se todos eles morrerem, eu desabo!
Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles.
E me envergonho, porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem estar. Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.
Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles.
Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer...
Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus amigos!
A gente não faz amigos, reconhece-os.

(Vinícius de Moraes)

O acordar

Por instantes, ela parou,
em frente do espelho.
Com um certo receio
levantou a cabeça,
e se olhou.
De tão perto estar,
longe se sentiu,
desconhecendo-se a si mesma.
Um frio lhe percorreu o corpo.
E,
teve vontade de chorar.
No seu rosto, o tempo
gravara as marcas duma vida.
Dum passado tão fugaz,
numa passagem tão despercebida.
O tempo se fez aquele instante,
e aquela imagem,
se fez nela.
Observou o espelho.
Observou-se em si mesma.
Com melancolia e desilusão
acariciou seu rosto.
Suas mãos enrugadas
continham a brancura da delicadeza:
dedos finos, encurvados,
instrumento de trabalho e lavor,
das horas sem fim,
a lavar, a cozer,
a afagar com amor.
Lentamente
afagou seu cabelo alvo,
cunho das horas perdidas,
feição do tempo,
marcas das emoções sentidas.
E seus olhos…
Esses,
apesar de tudo
continuavam vivos e atentos
como há vinte, trinta, quarenta anos atrás.
E,
Subitamente um lindo sorriso
quebrou a desilusão daquela imagem…
Da dor ao amor,
assim ela se sentiu.
Porque apesar de tudo,sentia-se ainda viva

Maria Cristina Quartas

A lágrima

Ansiosa e tímida
ela quer-se libertar.
Tenta ganhar força,
e mostrar tal qual é.
Tem medo,
e recua;
Tem vergonha
e esconde-se.
Aperta os dentes e cerra os punhos,
numa atitude de coragem.
Mas… ainda não se sente preparada,
para enfrentar o mundo.
A angústia e a nostalgia
apertam-lhe o peito.
Sente-se perdida e desamparada.
Sem nada que a prenda e diga:
“Fica”.
Aventura-se
e espreita.
Trava a respiração:
“ É agora ou nunca!...”
E… solta-se num suspiro profundo
De libertação.
Desliza,
lentamente…
da forma mais cuidadosa
E firme de se mostrar.
No silêncio
cai a lágrima
e com ela o calor da aventura.


Maria Cristina Quartas
1989

Sonhar...

… é encontrar de olhos fechados
o que com eles abertos
não encontro;
… é voar para o infinito
com os pés assentes no chão;
… é cantar melodias ao luar
para tu escutares.
- Olhar para ti e sentir que “tu” és “eu”;
… é olhar o mar,
sentir toda a sua força
e sede de amar;
… é sentir o perfume
duma rosa cheia de espinhos;
… é comer um fruto
que a terra ofereceu.
- beber duma fonte
a água cristalina e doce
numa manhã de Primavera;
… é correr para a tua sombra
à espera que me abraces;
… é esperar o raiar d’aurora;
… é viver de recordações de momentos nunca vividos;
… é crer naquilo que tu não crês;
… é sentir força de viver, e dizer: Sou feliz!
Sonhar é acreditar naquilo
que mais ninguém acredita.
Porque sonhar
é uma forma de viver
e é a razão do meu existir.

Maria Cristina Quartas
1982

Labirinto

Por entre caminhos percorro
nesta encruzilhada da vida.
Encontros e desencontros
deambulando perdida.

O tempo assim me leva,
num espaço indefinido,
num caminho imaginário.
Num espaço-tempo dividido.

A bússola que me orienta
desnorteia-me nesta realidade.
Já não sei se hei-de ir em frente
ou se hei-de ficar parada.

Como me posso eu guiar
num caminho sem orientação.
Procuro fora de mim
o que me faz dentro confusão.

Neste atalho em que me devaneio
perco o sentido, o lado certo.
Em quimeras, em ilusões
Já não sei se estou longe ou se estou perto.

Perdida neste labirinto
teço a teia que me envolve.
Sou presa em mim mesma,
sou puzzle que não se resolve!...


Maria Cristina Quartas
1997

O jogo da vida

Neste jogo da vida
joga dados, atira dados
aposta em cada saída.
Sempre na esperança de triunfar,
vai em frente sem parar.
O jogo é aventura,
sem a qual não há gozo de se viver.
Se parares, não vives.
Porque parar é morrer.
Acredita no destino
pois só tu o podes fazer.
Por mais difícil a jogada
não de te deixes vencer.
Nesta meta a que te propões
crê com força no teu ser.
Não haja nada,
nem ninguém
que te faça temer.

Aposta em ti,
aposta no jogo da vida.
E sabe certo
que chegarás ao fim
com a tua jogada vencida.

Maria Cristina Quartas
2006