quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

"O mistério da noite e dos prazeres da alvorada". Por Maria Cristina Quartas


Ainda de olhos fechados puxei a roupa para junto do pescoço. De novo aquele cheiro a naftalina e linho invadiu os meus sentidos e, junto com eles, a imagem da arca velha no fundo da sala…
Era uma arca mágica. A arca onde se guardavam alguns antigos objectos da família, os cobertores pesados de lã da Serra da Estrela e algumas mantas feitas de retalhos da tradição transmontana.
As noites já começavam a ficar frias em Setembro. E junto aos velhos lençóis de linho, dois cobertores eram bem necessários!
Mas aquele cheiro dos cobertores… preservava alguns segredos daquela linda terra e dos meus sonhos secretos…

A casa era de pedra. Umas pedras sobre as outras e, por entre os seus orifícios, habitava o pó seco, teias de aranhiços, lacraus e outros animas, como os “salta rostos” (sardaniscas) que povoam naquelas regiões secas.

O pai tinha mandado o tio Ivo caiar as paredes dos quartos e da sala. Fez questão absoluta de conservar aquelas janelas originais (em ferro com quadrados em vidro). Do lado de dentro, duas enormes portadas de madeira, que tinham como sua segurança uma trave grossa e lisa de madeira.

O chão era de tábuas, suspensas em colunas e vigas de troncos grossos de árvores antigas. E havia um alsapão que dava para a parte debaixo da casa (cavada no meio das rochas), onde havia o recanto para o cavalo (um espaço limitado com muro baixo em cimento) e o lagar do vinho.

O tecto era o próprio telhado. Uns troncos enormes se cruzavam e sobre eles assentavam telhas cor de fogo que tinham gravado “Fábrica de Cerâmica de Ermesinde”. Era alto e formava um cone. Um cone que cobria as 4 divisões da casa. Havia 3 que tinham sido privilegiadas com forro. A outra, a mais ampla, não tinha essa protecção pois era um local por onde a casa respirava e entrava a aragem fresca da noite…
Os meus pais dormiam no quarto que era dos meus avós. O meu irmão dormia no outro porque tinha forro também. E eu dormia precisamente naquele em que se viam as telhas, numa cama de ferro pintada em azul.



A cama ficava junto à parede que separava o quarto da rua do Vale Trigo. Apenas um pouco afastada da parede, por causa dos bichos (como dizia a minha mãe).
Eu, através da parede, da janela e do telhado sentia o mundo lá fora. E nas minhas fantasias de criança, imaginava que no meio da escuridão da noite, me transformava em feiticeira e entrava pelas trevas a dentro… sobrevoava arrojadamente os montes, os vales e o rio Douro que rasgava aquelas maravilhosas paisagens do Alto Transmontano.

Ali naquele quarto ouvia o silêncio da noite. E nos meus poderes de feiticeira, tanto era ave de rapina, como uma estrela cadente.
Ali naquele lugar, onde apenas o luar iluminava os caminhos, e desenhava os contornos das sombras cinzentas… onde o mundo passava de lindas cores a preto e branco… o céu estava mais perto da terra.


Um enorme feixe de estrelas. Uma longa estrada, chamada Estrada de Santiago (Via láctea). Milhares de estrelas, milhares de milhões de pequeninos pontos a brilhar no firmamento …. E, quando se olha, tem-se aquela sensação, que o céu vem ao nosso encontro e nos cobre de estrelas… É fantástico!
Cintilam, tremem, piscam…uma ou outra apenas brilha intensamente lá no alto. E quando se observa mais atentamente, há um forte clarão que deixa um rasto… e aí vê-se uma linda cauda brilhante intensa que desaparece atrás daquele astro – um cometa.

As portadas da janela ficavam abertas. E eu, através dos vidros, difundia-me naquela magnífico quadro onde me perdia no firmamento.

Noutros momentos… no aconchego das naftalinas entretinha-me a tentar decifrar os pequenos barulhos do monte - o piar dos morcegos e dos mochos que visitavam o telhado e as amendoeiras em redor; o barulhinho dos pirilampos e dos grilos no caminho do Vale Trigo; os ruídos dos ramos e das folhinhas das árvores; os rumores dos ventos no monte e no telhado; os zumbidos dos insectos no ar e os zunidos do próprio silêncio da noite.

Ali naquele quarto, assistia à mais bela sinfonia nocturna tocada com todos os sons da natureza! Era um segredo meu, que só eu sabia. Porque só eu sentia… E era assim que adormecia.

Era o prémio (talvez) que eu recebia, por não guerrear com o meu irmão o seu quarto (que tinha forro, um lavatório em ferro de pé alto, com bacia de esmalte azul escuro e um jarro de água. E até, um pequeno espelho tinha...

Já alta a madrugada, ainda meia confusa, das aventuras da noite mágica, mantinha-me inerte no despertar para um mundo real.

De olhos fechados sentia-me amparada no conforto da minha cama. Os cobertores de lã, os lençóis de linho grosso, o colchão de espigas de cereais e as almofadas de folhelho de trigo…

Pelas frinchas da porta da varanda, das telhas e das janelas, entrava a aragem matinal. Um cheiro intenso a restolho intensificado pelo orvalho da noite.
Juntamente com a suave brisa, entravam os primeiros murmúrios da vida da aldeia. Ouvia então, um compasso pouco apressado dum “toc toc, toc toc, toc toc” … e uma voz humana dizia “A
rre macho! Vamos lá… “.
Era o Sr. Amadeu Andrade. Passava ali todos os dias, mal o sol se levantava. Ia ao “prédio” (o Geraldinho) apanhar amêndoas, ou apanhar uvas, nos terrenos que ficavam perto do rio Douro…

E aos poucos e poucos, o “Arre Macho!”, “Toc toc”…. Ia ficando mais afastado.

Vindo da aldeia, um “có…córócóóóóóóóóó….” dava os primeiros “bons dias”. O galo da D. Suzana era um galo madrugador!

Eu, continuava inerte… à espera de mais.

Nisto, primeiro parecia ouvir um “tlim”… depois um outro “tlim,tlim”… e mais outro “tlim tlim tlim”… depois já não parecia. Era.

Um rebalho de cabras e ovelhas aproximava-se.
Um “mééééé” mesmo ali junto à parede… outro “mééééé” mais além. Outro e mais outro… e ao mesmo tempo o tilintar desordenado dos guizinhos misturava-se com os “mééééé” “be be be… “.

Um cão ladrava… e o pastor (Sr. José Bichança) batia com o cajado nas pedras enquanto dizia “ô, p’rá li ô”, “Anda badana! Tchq …tchq!” “Ah, excomungada!” P’rá li ô”….
Era uma sinfonia completamente anárquica. Em que havia ali um momento auge em que me sentia perdida no embalo da confusão daquele rebanho, e dos cheiros intensos do pó levantado pela caminhada do rebanho …. a poeira de terra seca e de “cheiro de ovelha”.

E, aos poucos e poucos ia ficando afastada daquela torrente. E duma forma lenta sentia o gado a afastar-se para bem longe…

Um silêncio intenso voltava para sentir de novo o cheiro do restolho e o cantar do majestoso Galo!...

Os barulhinhos da alvorada e do dia começavam a clarificar e a intensificar-se.
O sino da igreja do Terreiro dava as 7 horas da manhã com o som da Ave Maria…

Era nessa hora então, que me vinha à memória que estava nas férias grandes da escola, na aldeia do meu pai. E que dali a poucos dias, as rotinas da escola começavam.

Duma forma suave abria os olhos e olhava para a mala velha no fundo da sala. Era o momento de recolher todos os meus segredos.

Já desperta, levantava-me… e abria, de par em par, as portadas da varanda.

Dali, avistava o povoado todo… E em frente uma grande serra dividida em diversos retalhos de terrenos (os prédios) de amendoeiras e oliveiras.

Um pouco debruçada, com a cabeça à luz clara do dia, respirava fundo os aromas da terra fresca, da erva seca e os cheiros a fumados vindo do povo, enquanto avistava lá para longe, onde antigamente eram as minas de volfrâmio de Freixo de Numão….

Sentia-me feliz. E dava um sorriso sereno e muito íntimo. As histórias eram muitas a contar… Mas eu continha as mais importantes e que só eu sabia – aquelas que eu vivia em segredo com o mistério da noite e com os prazeres da alvorada na linda aldeia das Mós.



Maria Cristina Quartas
Janeiro 2010

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

“A panela de 3 pernas”. Por Maria Cristina Quartas


A propósito duma notícia do “Café Portugal” de 2/Janeiro, intitulada “Panelas de ferro à lareira voltam a ser utilizadas na Guarda”…


Entre montes e vales, numa terra árida e rochosa, de pó seco e trovoadas majestosas… de chuvas, de ventos fortes, de granizos e neves… de amendoeiras em flor e campos de papoilas e cardos agrestes… onde Sta. Bárbara é padroeira e habita lá num alto…fica uma linda aldeia chamada Mós.
As Mós do Douro pertence ao concelho de Vila Nova de Foz-Côa e distrito da Guarda.

Recuo 40 anos… uma saia às pregas de pano azul escuro. Uma fazenda grossa, restos duma confecção que a minha mãe fizera dum casaco comprido para o meu irmão mais velho. Lembro-me particularmente dessa peça de roupa, porque era nova. A mãe tinha-a feito de propósito para a estrear naquelas férias na aldeia.
Sentada num banquinho pequeno de madeira. E enquanto o calor penetrava por entre a malha das roupas grossas e eu sentia o meu corpo a absorver o quente que me evadia…eu passava as minhas mãozitas cândidas e macias, na textura aveludada da saia nova, deixando difundir os macios…A saia fazia parte de mim, porque era minha e feita para eu a estrear naquele dia.
Ao meu lado estava o meu irmão Orlando. Olhos grandes e brilhantes, escondidos por trás de umas grossas lentes, impacientes e traquinas…observavam os meus gestos. E num tom de voz sussurrada e provocadora, dizia “Olha, vês…as minhas botas. São bonitas, não são? O paizinho deu-me botas e a ti não!...”. Enquanto me inquietava com as suas coisas de menino, ia olhando para mim e ao mesmo tempo para os seus pés, que os acompanhava remexendo-se, exibindo-se!...

O avô Manuel Quartas estava ali também. Sentado, quieto, calado de olhos postos em cima das brasas, enquanto e a minha avó numa posição curvada mexia a sopa, na panela de 3 pernas, com uma colher de pau comprida e a base em forma de concha.
Ouvia-se o estalir da madeira velha a queimar… o lume era vivo e formava uma delongada nuvem alaranjada… as cinzas eram bravas e via-se pequenos pedaços de madeira em brasa por entre o borralho cinzento e cinzas escuras….

O calor era forte. Tão forte, que só de pensar, ainda o sinto nas minhas bochechas, em volta do rosto junto à raiz dos cabelos, nas minhas pernas, nas minhas mãos…
Não havia electricidade na aldeia. Os candeeiros eram a petróleo. Havia um enfarruscado pendurado num espeto de ferro, cravado na pedra enrugada e nua da parede velha. Estava sempre aceso fazendo companhia às chamas da lareira e assistindo às conversas despreocupadas que ali se faziam. Lembro-me de olhar para ele e sentir que ele tinha vida nos movimentos trémulos da sua ténue chama e dos cheiros que emitia do petróleo queimado. E na hora de deitarmo-nos, o avô levantava a chaminé de vidro e apenas com um sopro o fazia recolher também.
O lume não podia morrer. Enquanto a avó tratava da sopa, o avô lá se ajeitava com o fogo: ia revirando os troncos em brasa, remexendo as brasas e de quando em vez, atiçava as chamas com o foles… Também era das suas funções aconchegar as faúlhas que se espalhavam, com uma vassourinha feita de giestas secas.

E … ali estava ela – a panela de 3 pernas. Preta, redondinha, forte, resistente... sustentada pelas 3 elegantes pernas - altas e finas.

Sinto o cheiro e o sabor da sopa acabada de fazer naquela panela de ferro. Era uma sopa grossa, de couve galega, feijão vermelho, arroz, massa, batata e um bocado de carne de porco gorda... O seu segredo, estava não só forma como era cozida (na panela de ferro na lareira e duma forma lenta), a água pura da nascente, e haviam mais 2 coisas interessantes: a couve era esfarripada à mão (porque o metal altera o sabor da couve - dizia a minha avó) e a batata era esmigalhada ao garfo depois de tudo cozido. Lembro-me duma travessa em esmalte pintada, com rebordo a azul-escuro e com um desenho estampado... muita velha. E o garfo, era preto, torto e com uns dentes em metal velho muito compridos...

Velharias rústicas que guardo na memória e hoje nada é comparável - cheiros que ficam, sabores que entram... recordações ímpares!...
Juntamente com toda essa recordação, lembro-me ainda de ver (como se fosse agora), a minha avó e meu avô sentados num mocho (bancos baixinhos em madeira), junto à lareira. Ou estavam a rezar, ou a contar histórias antigas.
Eu sentava-me ao pé deles com o meu irmão (4-5 anos) e, enquanto os ouvia, ia gravando duma forma profunda os cheiros e as sombras que por ali se faziam. A lareira, servia para fazer a comida; fazer a lavagem para o porco (um caldeirão preto enorme a cozer restos de comidas, frutas, legumes, pão seco...); aquecer água (havia sempre uma outra panela com água aquecida); nos aconchegar nas velhas histórias e nos saberes dos mais velhos; nos aquecer daquele frio cortante e iluminar aquele espaço.

O lume, o crepitar da madeira a queimar, os cheiros, as sombras, as histórias... tudo era um mundo de fantasia. Uma fantasia real. Havia um mistério, uma saudade, uma nostalgia, e ao mesmo tempo sentia muito aconchego, ternura e protecção. E tão forte e intenso eu tudo aquilo sentia que, mesmo sem saber, eu sabia que aquele momento ficaria em mim guardado.
Hoje, a travessa não existe, nem o garfo, nem a panela de 3 pernas, nem o candeeiro, nem aquele lume... mas existem as histórias, as imagens, os cheiros, os sentimentos…tesouros que guardo em baús edificados no meu Templo Interior.