quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

"Terceiro Domingo de Setembro - Festa da Nossa Senhora da Soledade", por Maria Cristina Quartas

Festa da Nossa Senhora da Soledade

-Padroeira das Mós-

Verão de 1972.

As férias estavam a acabar e dentro de poucos dias as aulas começavam. Nada demoveria a vontade de meu pai: passar o dia da Festa das Mós. Era o colmatar dum período de plena felicidade para ele. E, assim, tudo acabaria em festa!

As férias na aldeia eram obrigatórias, tal como era obrigatório visitar os familiares mais velhos ainda vivos, saborear o pão, a água, os figos, as laranjas, as uvas… e tantas outras coisas que aquela terra nos oferecia e, particularmente a ele, a quem dava o verdadeiro sentido da vida e a alegria de ainda as poder saborear. Embora sempre pensasse que aquele seria o último ano que ali iria, provavelmente.

Lembro-me que regressávamos sempre naquela segunda feira: a segunda-feira do terceiro Domingo de Setembro.

Agosto tinha sido um bom mês de férias e de descanso, um mês rico em “matar as saudades” e avivar as recordações dos tempos passados, de histórias que trespassavam dos mais antigos e das memórias dos anos de crianças, dos pais, dos avós e bisavós.
E também era o mês dos “primos”. Vinham de todos os lados do mundo e traziam consigo novas gerações.
Os primos eram sempre muitos contudo, em Agosto ainda eram mais.
Os tios… esses estavam sempre iguais e contavam sempre as mesmas histórias nos afectos que transmitiam.

Agosto chegava ao fim. A aldeia estava cheia de forasteiros e emigrantes: uns de França, outros da Suíça, outros da Alemanha, outros da Capital ou do Porto…

Uns vinham à Festa da terra das suas mulheres, outros dos seus pais, outros vinham para a sua Festa na terra Natal. Era uma Festa muito especial: Festa da Nossa Senhora da Soledade.

Era a Festa mais importante de todas. A Festa em que a presença de cada um era fundamental. Por isso, no Terceiro Domingo de Setembro, todos os Mosenses tinham que estar nas Mós.

Finais de Agosto, início de Setembro: os cântaros já começavam a andar em agitação.
As pedras das ruas eram asseadas, as casas lavadas e varridas com vassouras feitas de giestas.
Os atoalhados eram retirados das velhas malas de madeira e arejados do cheiro da naftalina.

As portas abriam-se para que quem passasse na rua pudesse ver o brio do seu interior.
“Bom dia, Maria. Hoje madrugaste!”
“Ah, atão! Vem aí a minha Alice e traz a sua pimpona, mais o mais velho. Vêm cá almoçar. Vou à horta buscar umas couvinhas e feijão, que eles gostam da sopa de cá! A minha Alice diz que anda ougadinha por uma moira preta. Coitadinha! Na cidade não as há!”

Havia um movimento diferente em toda a aldeia. E os ânimos eram outros.
As mulheres juntavam-se na fonte enquanto os cântaros enchiam e contavam dos seus afazeres. Contavam quem vinha e por quem esperavam. A aldeia era uma só família e quem viesse fazia parte dela também.

Nessa altura, os fornos enchiam-se de lenha. Era cozido o pão e confeccionados os doces tradicionais: económicos, bolas de azeite, doces de amêndoa, arroz doce, suplicas…

Exceptuando o queijo de ovelha e de cabra, que era feito no seu tempo certo para ser saboreado nessa altura.
Tudo era preparado e confeccionado a preceito e a tempo.

Os pastores (Tiaiata, Elísio Recto, António Brilhante, Zé Bichança…) matavam alguns dos seus gados, que criavam com doçura naqueles montes e vales, com intento para a festa. O borrego ou cabrito era o prato da festa!

A carne era preparada com todos os temperos. E os doces eram cuidadosamente guardados com um paninho branco de linho. E os ensaios eram muitos para que tudo saísse a preceito no dia e na hora certa.

As raparigas juntavam-se na garagem da casa do Senhor Padre Celestino e faziam as fitas com metros de comprimento, de papel colorido, recortadas, que iriam enfeitar a ruas e o largo do terreiro.
Enquanto recortavam flores cantavam e contavam as histórias dos seus amores.

Neste reboliço de preparação da Festa, até as Santas e os Santos eram preparados.
Umas semanas antes, várias pessoas responsabilizavam-se por um determinado Santo. Conforme haviam combinado anteriormente, cada um levava o seu, da Igreja para sua casa. Existiam dois Santos que não estavam no mesmo local: Santo António que estava na capelinha ao pé da escola primária e Santa Bárbara na capelinha em cima do monte.

Os Santos eram cuidadosamente adornados. Vestidos com finas roupas asseadas. E os andores eram preparados a preceito, dignos de transportar as imagens sagradas.

Naquela altura todos os Santos tinham o mesmo valor. Por isso, o esmero era imenso para que cada um fosse o mais bonito de todos.
Contudo, no meio de todos, a padroeira da aldeia era sempre o centro das mais elevadas atenções. Nossa Senhora da Soledade, coberta de um lindo véu branco, em cima da barquinha.

Conta então a velha história que ela era a protectora dos homens que iam pelo rio Douro na altura da guerra.

Sábado:
Por volta das 10h.
Nossa Senhora da Soledade saía então da Igreja em cima dum andor, acompanhada duma cruz e duas lanternas. Fazia visita por todas as ruas e ruelas da aldeia. A seu lado, as mordomas levavam um cesto, onde recolhiam as prendas. As prendas eram o que cada um queria dar: bolachas, doces, vinho, roupa, objectos de decoração, louças, etc…

Davam então a volta ao povo, recolhiam as prendas e, era igualmente tradição, as pessoas colocarem dinheiro na Nossa Senhora. As notas eram colocadas com um alfinete nas fitas que acompanhavam o seu lindo véu.

Simultaneamente, por onde passavam, os Santos iam saindo das suas casas de acolhimento.

Cada acolhedora levava a sua Santa em cima dum andor decorado, com quatro pessoas a ajudar. Tudo corria como estava combinado e planeado.

Depois da volta ao povo, eram recolhidos na Igreja, juntamente com os cestos com as prendas.

Entretanto, os cestos iam para o Bazar no Terreiro para leiloar. O dinheiro seria revertido para a Igreja.
Os andores ficavam até Domingo, à hora da missa solene na Igreja.

Da parte de tarde havia animação: ranchos, pauliteiros, aviões de Guerra, jogo de futebol (os mosenses contra os forasteiros), etc…
As “modinhas” eram sempre as mesmas, e muito bonitas:

“Minha Santa Mós
Minha terra bela
É com alegria
Que estamos nela…”

“O carrapito da dona Aurora
era postiço
soube-se agora…”

E então, nos intervalos, realizavam-se os leilões de modo a angariar as verbas para a ajuda da Festa.

À noite, a Festa era animada com um conjunto de música vindo de fora e com o fogo-de-artifício, que era à meia-noite.

Durante a actuação do conjunto, toda a gente dançava. Homens, mulheres, crianças, velhinhos… As mulheres dançavam umas com as outras, homens com os homens… a criançada fazia rodas e até algumas mulheres dançavam com o cântaro da água à cabeça.

Todos dançavam e qualquer um servia para seu par, desde que estivesse ali à mão. E não havia um “não”, ou “não quero” ou “não posso”! Nessa altura, não havia dores, nem maleitas.

Domingo:
De manhã fazia-se o preparativo para a missa. Estreava-se roupa nova e, ao pequeno-almoço, os tradicionais doces eram saboreados com o queijinho de ovelha.

Ao meio-dia havia a missa solene, a qual era cantada com a banda de música que, normalmente, era convidada de Freixo de Numão.
A missa tinha uma particularidade muito original: Havia o chamado “Sermão à Nossa Senhora”.
As pessoas com problemas faziam os seus pedidos ao padre ou escreviam num papel, fazendo também algumas promessas. No dia da missa, o Senhor Prior preparava um texto à Senhora da Soledade, onde a responsabilizava dos seus deveres e a lembrar-lhe da sua preciosa ajuda na resolução dos problemas de quem por ela tinha tanta fé!

Ao almoço, comia-se o borrego/cabrito estufado com batatas cozidas. E os músicos iam almoçar a casa dos mordomos, redistribuindo-se.

De tarde a festa continuava. Havia novamente a animação, os leilões e danças.
Às 5h da tarde fazia-se a volta à aldeia com todos os andores acoitados na Igreja. A procissão era acompanhada a passo lento, onde as pessoas levavam o seu rosário rezando, ou uma vela acesa pelo caminho.



Os Santos voltavam à Igreja e ficavam expostos até segunda-feira, altura em que seriam expostos novamente nos seus lugares, nos altares, depois da última procissão.







Segunda feira:
A festa continuava, com as tradicionais animações.

Já ao fim da tardinha, às 20h00 havia novamente uma procissão que demorava duas horas (até às 22h00) e dava então volta à aldeia toda. Era a despedida.
Os altares eram levados para a Igreja e os santos finalmente recolhidos aos seus altares.




Mas, havia um que ficava de fora: o Santo António. Isto porque ia para a sua capelinha (a capela Santo António). Este era então acompanhado pela banda de música e por todo o povo.

O Santo era exposto no seu altar e o povo regressava a dançar, à frente da banda, até ao Terreiro.

A alegria era muita e a sensação do dever cumprido com os Santos também.

“Vamos todos para o Terreiro
Estamos sem festa
E sem dinheiro”

“A laranjinha caiu caiu
A laranjeira no ar ficou
Ai a mocidade das Mós
Ai em toda a parte reinou”

As quadras repetiam-se, durante todo o caminho até ao Largo do Terreiro, enquanto batiam palmas e dançavam.

Por fim, já no Largo do Terreiro, o povo cercava a camioneta e não deixavam os músicos da banda irem embora, sem tocar mais uma: “Só mais uma, só mais uma!”

Depois, das 22h00 até às 2h00 da madrugada do dia seguinte, havia um conjunto de música a tocar enquanto a folia ainda reinava já no seu final.

Terça feira:
De manhã as mordomas desfaziam os andores e recolhiam-nos na garagem da casa do Sr. Padre Celestino.

Agora o reboliço acalmava. O povo sentia-se cansado e satisfeito de tanta festa e folgança.

Contudo, nesse dia também, os abraços já começavam a ser alguns, assim como as lágrimas de saudade.

Como tudo na vida, as coisas mudam. Muitos hábitos se vão perdendo, dando lugar a novos costumes.

Passados estes anos todos senti vontade de reviver os tempos antigos. E fui então de comboio à Festa das Mós.

O Largo do Terreiro estava no mesmo lugar. Mas as pessoas eram outras. As músicas também. O velho olmo (com mais de 500 anos) que cobria o largo e a festa, é agora uma jovem árvore de tronco fino.
Contudo, algumas coisas ainda se mantêm. Mas as sensações são diferentes.

No Domingo de manhã, um pouco antes da missa, fui dar um passeio até à estrada com o meu primo Alfredo. Vínhamos a recordar os nossos pais, os tios… comentávamos as mudanças que sentíamos comparativamente ao antigamente. E o desencanto e desinteresse que coisas de agora nos transmitem.
Perto do Atalho, Cecília Amélia Ferreira (87 anos) vinha em passo apressado. E Alfredo interpelou:
- “Oh Sra. Cecília, onde vai tão apressada?"
- “Vamos lá, que está na hora da missa. Isto hoje não há lugares!”
- “Está toda bonita! Toda pimpona!...”
Com um sorriso do tamanho do mundo e com um olhar de felicidade respondeu:
- “Pois atão!... hoje é dia de festa!”

Em silêncio continuei a caminhada em direcção à Igreja.
E durante a missa, observava os Santos expostos e reflectia: “Estes estão na mesma. Para estes nada mudou!”
Enquanto isso, vinha-me à ideia o rosto de felicidade da Sra. Cecília.
E fiquei a interrogar-me, como é que uma pessoa com tanta idade conseguia encarar as mudanças e continuar a manifestar tanto entusiasmo com uma festa que outrora fora tão diferente?!

Aquela linda velhinha tinha-me acabado de ensinar uma coisa muito importante da Vida: o verdadeiro sentido de festa é aquele que está dentro de nós!


Maria Cristina Quartas


Nota: Agradeço a gentileza do Paulo Almeida em me ter fornecido fotografias antigas suas que testemunham este texto.