quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

"Clarinda Polido", por Maria Cristina Quartas


Foto de MCQ


http://www.youtube.com/watch?v=o3upRNN_Bag&feature=related


Distante já se ouvia o buzinar, e as mulheres juntavam-se no Terreiro.

Lá longe, na estrada, avistava-se a camioneta, que se ia aproximando com o “apitar” em constante sinalização.

- “É o chicheiro?”

- “Não. É o Padeiro. Oh Alda, vem aí o Padeiro.”

- “Da Horta?”

- “Não. É o padeiro de Freixo de Numão”.

Clarinda andava de um lado para o outro e começava a ficar agitada com a movimentação.

Enquanto esticava as mangas e as prendia com as mãos, ou puxava para cima e cruzava os braços, falava sozinha.

A camioneta aproximava-se lentamente para dar tempo às pessoas para descerem as calçadas de terra batida e se juntarem no largo. Passava no lavadouro, na fonte e subia em direcção ao Largo do Terreiro sempre a “apitar”.

O povo ali estava em fila desordenada, mas todos sabiam a sua vez.

Uns pediam um pão de centeio, outros de quatro cantos, outros perguntavam se trazia bolas de azeite.

O pão era como uma broa grande. Convidativo a ser fatiado e a juntar-lhe um naco de queijo de cabra ou a acompanhar com um cacho de uvas doces daquele vale de Sta. Bárbara.

Clarinda aproximava-se da camioneta e, com o olhar vago, parecia querer ver o que ali se passava, fazer sentir a sua presença e sentir um pouco do calor das pessoas.

- “Então Clarinda, a Senhora quer comprar?”

Clarinda esticava as mangas e cruzava os braços: “Merda, merda. Se tivesse pão dava-te”.

O povo ria-se das suas palavras. Mas havia um ar de ternura nos sorrisos naqueles rostos gastos pelo tempo.

-“Oh Clarinda queres pão filha?”

Clarinda encolhia os ombros e respondia: “Gostas dela, gostas dela, gostas?”.

Clarinda fazia parte do Largo do Terreiro. E lembro-me de sempre a ver por lá, quando era pequenita e íamos lá passar as férias de Verão.

De trás para a frente, fazia os seus monólogos, com os braços cruzados e a mão esticada cravando dois dedos no rosto.

Quando passávamos no Terreiro ela aproximava-se de mim e da minha mãe. Parava à nossa frente e ficava a olhar-me. E minha mãe dizia:

- “Olha, esta menina ainda é tua prima. É a Clarinda.”

- “Clarinda, esta menina é minha filha. E é tua prima”

Clarinda sorria, e dizia:

- “Menina, gostas dela, gostas dela, gostas?”

A casa da Clarinda era o Largo do Terreiro e a sua família toda a aldeia.

Hoje tem 59 anos de idade. Fui visitá-la no dia 13 de Maio deste ano a casa de uma sua irmã na Laginha. Estava ela sentada ao lado da sua mãe (Sra. Homera), com 98 anos de idade, ambas muito asseadas a verem televisão.

Estava igual. O mesmo rosto, o mesmo jeito…

O tempo passa e tantas coisas mudam. Mas Clarinda não.

O que será das Mós sem a nossa Clarinda?!...

Uma figura típica, mas uma pessoa querida, estimada e respeitada por toda a aldeia e a quem a ela pertença.

Talvez seja esse carinho, esse afecto tão especial, que a torna sempre igual.

Clarinda tem as suas regras e normas sociais e morais. Não é tosca, não! Apenas não entende o sentido da vida como, afinal, acontece com cada um de nós.

As Mós tem mais valor por ter a Clarinda, isso é certo. Ela faz parte da aldeia e é sempre lembrada com muito carinho e respeito.

E acontece porque, no fundo de todos nós, existe uma Clarinda, onde os monólogos, a agitação, as palavras incompreendidas também existem.

Quantas e quantas vezes nos aproximamos de alguém à espera que nos acarinhem? Quantas e quantas vezes, os nossos desabafos não são palavras soltas, aparentemente sem sentido?

Quantas e quantas vezes, não colocamos a mão no rosto, puxamos as mangas, vagueamos dum lado para o outro em agitação, à procura duma resposta que nunca chega a vir?

Clarinda não sabe de política, nem de matemática, nem de geometria, nem de marketing ou de astrologia…. Mas sabe o sabor da imaculabilidade da vida.

Sabe o que é cheiro da terra, o sabor da água límpida e do ar puro da montanha. Percebe das azeitonas, das amêndoas, das uvas, das laranjas e de outros frutos acabados de colher. Conhece o nascer do sol junto de Santa Bárbara e o pôr-do-sol por trás das Seixas. Reconhece os ecos dos montes das mais belas sinfonias nos sons da natureza. Conhece a Via Láctea, a Estrela Polar, a Ursa Maior, a Ursa Menor e a Classiopeia… e já viu centenas de estrelas cadentes e reconhece todas as estrelas que cintilam e aquelas que não brilham.

Estou certa que Clarinda nunca sentiu falta de nada e nunca reclamou por não ter outras coisas, senão as que teve e tem na vida. Porque nunca lhe faltou o essencial: o carinho o afecto, respeito de todos e o aconchego consagrado da Mãe Natureza.

Muitos perguntarão: “Afinal, o que tem a Clarinda?”

Talvez a resposta esteja na maior questão e problema que ela colocava enquanto deambulava no Largo do Terreiro com a mão no rosto monologando: “Porque é que as outras pessoas são todas iguais e porque complicam tanto todas as coisas?”

Querida Clarinda quem me dera saber as coisas que tu sabes!

“Gostas dela, gostas dela, gostas?”... Obviamente que a resposta é: “Sim!”

Maria Cristina Quartas

01/Dez/2010


"Num 3º fim de semana de Setembro", por Maria Cristina Quartas


Foto de MCQ


http://www.youtube.com/watch?v=vQVeaIHWWck&feature=related


18 de Setembro 2010

Era sábado. Um sábado de um terceiro fim de semana de Setembro.

Naquele dia acordei cedo. Mais cedo do que habitualmente.

Tinha que organizar a minha vida durante a manhã, para estar disponível para o trabalho com o meu amigo M.. Trabalharmos no nosso livro “A Caminho de Santa Bárbara”.

Na hora marcada, M. chegou. O livro estava quase pronto, mas ainda faltavam alguns arranjos gráficos, escolha de fotografias, um ou dois textos meus e alguma poesia que ele gostaria de escrever, sobretudo acerca da viagem de comboio pelo Douro até Freixo de Numão.

Sentia-me feliz. Sentíamo-nos felizes, porque estávamos a fazer um trabalho em conjunto muito bonito. Partilhávamos a motivação que sentíamos e aqueles momentos de encontro eram, de facto, mágicos. O livro agora já tinha forma, conteúdo… estava praticamente pronto. Já se via em concreto o que tinha sido apenas um sonho, um projecto.

15h17. Fechei a porta da rua. E fui a correr à janela da sala dizer-lhe adeus, enquanto M. sorria acenando.

Sozinha com o meus pensamentos, reflectia o quão importante é termos um amigo com quem partilharmos o sentir da nossa alma, numa comunhão plena de sentimentos puros, sinceros… como se naquele momento as duas almas fossem uma só.

E enquanto olhava o céu e as serras de Valongo no horizonte, sentia-me feliz por me entender desta forma de sentir a amizade e ter o previlégio de ter assim um amigo.

Imbuída num espírito de serenidade, alegria e afectos veio-me ao pensamento, (ao olhar as serras de Valongo), as Mós. E associei o meu estado de espírito ao que sentia quando olhava aqueles montes, que como dizia o meu amigo “ancas de virgem/gigante deitado…” e me transmitiam belas sensações de leveza e de serenidade.

E foi nesse preciso momento que me lembrei que, naquele dia, as Mós estaria em festa (festas em Honra de Nossa Senhora da Soledade).

16h00. A vontade era imensa de sentir a Aldeia. Abraçar os primos, rever amigos.

Calcei umas sapatinhas. Meti duas ou três coisas num saco e saí pela porta fora em direcção à estação dos Comboios de Ermesinde.

17h15 no relógio da Estação. A locomotiva aproximava-se lentamente e era anunciado no altifalante: “Está a dar entrada na linha número três o comboio procedente de Porto-Campanhã com destinho ao Pocinho.”

O comboio parou na gare e subi a carruagem.

Entrei na penúltima carruagem que ia quase vazia.

Tudo aquilo era uma aventura para mim. Mas sentia-me confiante e empolgada, pois ia fazer a viagem de comboio, para sentir de perto o encanto daquela viagem e poder partilhar com o meu amigo tudo aquilo que ia ver e sentir.

Chegada ao Marco de Canaveses (18h21) o comboio parou. E foi aí que decidi pegar num bloco e numa caneta para começar a descrever esta minha aventura.

À minha frente, uma senhora de meia idade dormitava, enquanto deixava cair sobre o regaço o terço que trazia nas mãos e ia rezando com as mãos molengonas cada pedra do rosário.

Pela janela ali ao lado o rio Douro começava a aparecer.

A paisagem começa a ser agora o cenário do filme que eu ansiava ver.

Pedi licença e abri a janela.

O rio Douro cada vez estava mais perto e eu sentia-me a transportar para os encantos das águas serenas, que ora se mostravam verdes, ora azuis, ora cor de prata, ora cor de ouro… o rio mudava de forma, de cor, e em cada recanto via pormenores encantados que me faziam suspirar de plena felicidade.

M. ia comigo no pensamento. E cada foto que tirava era para lhe mostrar, para ele ver a magia que me criava todas as sensações exuberantes!

O terço estava a agora pousado sobre o regaço, e vi no rosto daquela mulher um lindo sorriso.

A conversa começou a fluir. E a viagem tornara-se agora mais agradável.

Marília sorria enquanto me olhava no meu entusiasmo das fotos que tirava, e nos murmúrios que fazia: “Que lindo!”, “Ai que que sonho!”, “Ai se o M. aqui estivesse!”…

Começamos a partilhar a beleza que ambas assistíamos enquanto comentávamos a beleza do Douro: “O Douro é mesmo lindo! Parece um espelho, tão límpido e tão brilhante!”

Assim eram os seus olhos: muito azuis e com um brilho de felicidade. O motivo do Douro fora apenas o início para uma longa conversa. Marília ia falando de si, das viagens que fazia tantas e tantas vezes sozinha.

O diálogo começava a ter conteúdo, como se aquele momento fosse o último dos nossos encontros, e facilmente nos sentímos próximas, como se fossemos amigas de longa data.

A viagem agora era a três. Pois, enquanto falava com Marília, observava o rio e ia telefonando ao M., partilhando a emoção que sentia naquilo que via.

Marília ia sair em breve. Pediu-me o contacto e, com os olhos brilhantes, disse-me que queria ser minha amiga.

O comboio parou na gare da Régua.(19h09)

Marília abraçou-me e, com os olhos cheios de lágrimas, disse-me que a coisa mais bela desta vida era ter amigos verdadeiros e conhecer pessoas especiais.

Desceu do comboio e ficou na plataforma da estação com a mão levantada acenando, enquanto dizia: “Até breve” e os seus olhos resplandeciam de emoção.

Aos poucos e poucos, a luz do dia ia fazendo sombras das montanhas. No rio desenhavam-se formas surreais dos reflexos das encostas, do céu e das sombras.

Tudo me parecia surreal mas dum encanto tal, que preenchia o silêncio que se fazia e preenchia a ausência daquela minha companhia.

As montanhas começavam agora a tomar apenas forma de relevo e desenhavam os seus contornos bem definidos no céu que, lentamente, se ia assombrando num azul turquesa, que se reflectia no rio… e que me tornava deslumbrada e confusa, pois não sabia se era o céu ou o rio que reflectia, ou se as montanhas eram as sombras no rio ou se os relevos que no céu se desenhavam.

Os relevos eram negros, o rio um azul turquesa brilhante e o céu da mesma cor do rio, crivadinho de estrelas, de todas as formas, tamanhos, a cintilar duma forma orquestral numa sinfonia encantada da Natureza.

Os cheiros eram intensos. O cheiro da terra misturava-se com o cheiro do rio. Num perfume que embalava as flores do monte, onde o cheiro do restolho era o sustento de toda aquela fragrância.

A serenidade, a paz, pulsava na sua forma mais pura e intensa do céu, do rio, das sombras, das montanhas.

No silêncio vibrava a mais bela sinfonia que embebecia todos os meus sentidos.

No meio do nada, naquele paraíso, uma pequenina estação surgiu – Vesuvio! (20h17)

Liguei ao M. novamente e descrevi o que sentia e o que via com todos os sentidos do corpo e da alma.

M. ouvia silenciosamente o que com ele partilhava. E, num tom de voz doce e emocionado, retorquiu: “Só quem ama a Natureza e a sabe escutar, a vê como a tu a descreves!”.

20h23. Desci o comboio – Freixo de Numão.

A Estação estava deserta. O comboio deu partida em direcção ao Pocinho e, do outro lado da linha, a minha prima Alice Diogo esperava-me com a sua filha Sãozinha (que já não a via há mais de 35 anos) e o marido Abreu.

Com o coração cheio de emoções e recordações antigas, seguimos em direcção às Mós, ao encontro da Festa da Nossa Senhora da Soledade.


Maria Cristina Quartas


Nota: "Rio de Ouro" foi o último poema do Prof. Dr. Mário Anacleto