domingo, 27 de dezembro de 2009

"O culto da morte - na nossa cultura", por Maria Cristina Quartas

A morte é um “fenómeno” natural, que o Homem desde o princípio dos tempos a tem caracterizado com misticismo, magia e mistério.
O ser Humano é por natureza um Ser místico. É através deste misticismo, que ele tenta se compensar, equilibrar e de alguma forma recriar as explicações que o satisfaçam, naquilo que não compreende, ou não consegue alcançar. Como Ser pensante e racional, tem necessidade imediata, de obter resposta às suas questões. A "não resposta" àquilo que ele equaciona, ou pretende entender, cria-lhe ansiedade e angustia, pela incompreensão das suas próprias limitações.
Através da Religião (do latim: "religio" usado na Vulgata, que significa "prestar culto a uma divindade", “ligar novamente", ou simplesmente "religar"), o Homem não só minimiza o seu sofrimento da angustia causada pelas suas limitações e incongruências (pondo a cima dele uma identidade mais inteligente e detentora de toda a verdade – verdade essa que ele não consegue alcançar)… como pratica um acto social/colectivo, onde sente o apoio do aconchego, pela consensualização da compreensão e pela partilha.
O culto da morte é um acto religioso. Devido à angustia e dor da separação e do desenlace, o Homem pratica esse acto, para sentir que de alguma forma é compreendido na sua dor e sofrimento. Para sentir amparado na sua fragilidade. E também para de alguma forma prestar homenagem a quem parte e com quem conviveu, partilhou e amou. Diria que, em certa forma o imortalizar…
Ou seja, se por um lado procura a protecção/aconchego/compreensão Divina, por outro, concentra a sua dor na partilha com os de mais. Talvez esta dualidade de comportamento, tenha a sua explicação na insatisfação de resposta, quer num ou noutro (quer na Divindade Superior, quer nos outros Seres humanos)....
Assim, o culto da morte é um acto colectivo, por uma necessidade que tem a sua génese no individual.
O Homem, através do social/colectivo sente uma maior protecção… o que remonta à história primitiva do Homem…
Esta é uma perspectiva no meu ver.

Contudo, existe uma outra perspectiva, também com génese no individual: o medo e a angustia do esquecimento (isto é, de não ser mais lembrado - o fim das coisas – o NADA - uma noção difícil de entendimento). De facto, viver uma vida de constantes preocupações de entendimento das coisas e de si mesmo… de uma incessante inquietação na busca de respostas e explicações das coisas e do Mundo…. para além de toda uma basta experiencia de aprendizagem, de conhecimentos, sentimentos, emoções e experiências…. Coloca-se obviamente a questão: para quê tudo isto se um dia tudo acaba?!
Ao conceituarmo-nos na perpetuidade da vida e da alma, o Homem cria uma razão para a justificação de toda esta sua existência.
Existe assim, um medo individual ao esquecimento e a esta coisa assim designada: “tanta coisa para coisa nenhuma”!
O culto da morte é assim também, uma celebração ao não esquecimento e perpetuação da lembrança daquele ser, pela sua importância com os demais nesta vida terrena. Ao celebrarmos o outro, estamos a fazer lembrar os outros de nós – a afirmar a nossa importância da nossa existência.
Diria, uma renegação da morte e ao mesmo tempo uma afirmação individual de posse perante a vida. Há aqui um processo de vinculação existencial. Que curiosamente, me parece que funciona de nós, para nós mesmos!

Com a evolução dos tempos, este culto tem sofrido alterações. O comportamento do Homem, tem como base uma cultura e uma educação. Ora, se estas evoluem, obviamente que as manifestações comportamentais humanas mudam também.
Essas mudanças que ocorrem ao longo da história das culturas fazem-se duma forma lenta. O que é de se compreender! De geração em geração passa a tradição, e sendo esta uma crença estreitamente individualizada, passa a ser uma necessidade intrínseca do Homem.

Com o evoluir da Ciência e das tecnologias, o Homem vai descobrindo que afinal o seu Deus, não é tão prodigioso quanto isso. Se por um lado, ele permite o sofrimento, a injustiça, a incompreensão, as limitações humanas, as guerras, as doenças…. O Homem também é capaz de fazer algumas coisas fantásticas, nas quais Ele afinal se mostra menos prodigioso até então. O Homem já é capaz de fazer clones…fazer transplantes, cirurgias, parar/tratar doenças… dominar as energias nucleares, biológicas…consegue ir a outros planetas…consegue num mesmo momento acabar de escrever uma mensagem e ela ser lido pelo mundo inteiro…

Bom, será que o Deus deste século é tão poderoso quanto o Deus de há séculos atrás?
Parece que efectivamente não é.
As crises existenciais começam a aparecer. O que era certo e inquestionável começa agora a criar duvidas… os olhares são diferentes… os sentimentos são direccionados não de baixo para cima, mas de cima para baixo….
A religiosidade já não é a mesma. E naturalmente, o culto da morte, começa a entrar em “crise”!!!...

As pessoas não se apercebem. As pessoas não sabem. Apenas sabem que existem normas sociais, estereótipos sociais… e como tal, duma forma (diria) completamente encenadora vão-se comportar (porque é tradição, porque é habito, porque é costume, porque é o normal..).
É uma atitude individual inconsciente. E acaba por se reflectir numa atitude simulatória de sentimentos que não têm o valor que lhe é atribuído. Ou seja, o culto da morte passa a ser dirigido não ao morto, mas à relevância/à importância da existência do vivo.
Se assim é, não será o culto da morte mais uma das muitas formas de exibicionismo público de vivos, cujo motivo tem origem num morto?

Para reflectir! …

Maria Cristina Quartas