quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

“A panela de 3 pernas”. Por Maria Cristina Quartas


A propósito duma notícia do “Café Portugal” de 2/Janeiro, intitulada “Panelas de ferro à lareira voltam a ser utilizadas na Guarda”…


Entre montes e vales, numa terra árida e rochosa, de pó seco e trovoadas majestosas… de chuvas, de ventos fortes, de granizos e neves… de amendoeiras em flor e campos de papoilas e cardos agrestes… onde Sta. Bárbara é padroeira e habita lá num alto…fica uma linda aldeia chamada Mós.
As Mós do Douro pertence ao concelho de Vila Nova de Foz-Côa e distrito da Guarda.

Recuo 40 anos… uma saia às pregas de pano azul escuro. Uma fazenda grossa, restos duma confecção que a minha mãe fizera dum casaco comprido para o meu irmão mais velho. Lembro-me particularmente dessa peça de roupa, porque era nova. A mãe tinha-a feito de propósito para a estrear naquelas férias na aldeia.
Sentada num banquinho pequeno de madeira. E enquanto o calor penetrava por entre a malha das roupas grossas e eu sentia o meu corpo a absorver o quente que me evadia…eu passava as minhas mãozitas cândidas e macias, na textura aveludada da saia nova, deixando difundir os macios…A saia fazia parte de mim, porque era minha e feita para eu a estrear naquele dia.
Ao meu lado estava o meu irmão Orlando. Olhos grandes e brilhantes, escondidos por trás de umas grossas lentes, impacientes e traquinas…observavam os meus gestos. E num tom de voz sussurrada e provocadora, dizia “Olha, vês…as minhas botas. São bonitas, não são? O paizinho deu-me botas e a ti não!...”. Enquanto me inquietava com as suas coisas de menino, ia olhando para mim e ao mesmo tempo para os seus pés, que os acompanhava remexendo-se, exibindo-se!...

O avô Manuel Quartas estava ali também. Sentado, quieto, calado de olhos postos em cima das brasas, enquanto e a minha avó numa posição curvada mexia a sopa, na panela de 3 pernas, com uma colher de pau comprida e a base em forma de concha.
Ouvia-se o estalir da madeira velha a queimar… o lume era vivo e formava uma delongada nuvem alaranjada… as cinzas eram bravas e via-se pequenos pedaços de madeira em brasa por entre o borralho cinzento e cinzas escuras….

O calor era forte. Tão forte, que só de pensar, ainda o sinto nas minhas bochechas, em volta do rosto junto à raiz dos cabelos, nas minhas pernas, nas minhas mãos…
Não havia electricidade na aldeia. Os candeeiros eram a petróleo. Havia um enfarruscado pendurado num espeto de ferro, cravado na pedra enrugada e nua da parede velha. Estava sempre aceso fazendo companhia às chamas da lareira e assistindo às conversas despreocupadas que ali se faziam. Lembro-me de olhar para ele e sentir que ele tinha vida nos movimentos trémulos da sua ténue chama e dos cheiros que emitia do petróleo queimado. E na hora de deitarmo-nos, o avô levantava a chaminé de vidro e apenas com um sopro o fazia recolher também.
O lume não podia morrer. Enquanto a avó tratava da sopa, o avô lá se ajeitava com o fogo: ia revirando os troncos em brasa, remexendo as brasas e de quando em vez, atiçava as chamas com o foles… Também era das suas funções aconchegar as faúlhas que se espalhavam, com uma vassourinha feita de giestas secas.

E … ali estava ela – a panela de 3 pernas. Preta, redondinha, forte, resistente... sustentada pelas 3 elegantes pernas - altas e finas.

Sinto o cheiro e o sabor da sopa acabada de fazer naquela panela de ferro. Era uma sopa grossa, de couve galega, feijão vermelho, arroz, massa, batata e um bocado de carne de porco gorda... O seu segredo, estava não só forma como era cozida (na panela de ferro na lareira e duma forma lenta), a água pura da nascente, e haviam mais 2 coisas interessantes: a couve era esfarripada à mão (porque o metal altera o sabor da couve - dizia a minha avó) e a batata era esmigalhada ao garfo depois de tudo cozido. Lembro-me duma travessa em esmalte pintada, com rebordo a azul-escuro e com um desenho estampado... muita velha. E o garfo, era preto, torto e com uns dentes em metal velho muito compridos...

Velharias rústicas que guardo na memória e hoje nada é comparável - cheiros que ficam, sabores que entram... recordações ímpares!...
Juntamente com toda essa recordação, lembro-me ainda de ver (como se fosse agora), a minha avó e meu avô sentados num mocho (bancos baixinhos em madeira), junto à lareira. Ou estavam a rezar, ou a contar histórias antigas.
Eu sentava-me ao pé deles com o meu irmão (4-5 anos) e, enquanto os ouvia, ia gravando duma forma profunda os cheiros e as sombras que por ali se faziam. A lareira, servia para fazer a comida; fazer a lavagem para o porco (um caldeirão preto enorme a cozer restos de comidas, frutas, legumes, pão seco...); aquecer água (havia sempre uma outra panela com água aquecida); nos aconchegar nas velhas histórias e nos saberes dos mais velhos; nos aquecer daquele frio cortante e iluminar aquele espaço.

O lume, o crepitar da madeira a queimar, os cheiros, as sombras, as histórias... tudo era um mundo de fantasia. Uma fantasia real. Havia um mistério, uma saudade, uma nostalgia, e ao mesmo tempo sentia muito aconchego, ternura e protecção. E tão forte e intenso eu tudo aquilo sentia que, mesmo sem saber, eu sabia que aquele momento ficaria em mim guardado.
Hoje, a travessa não existe, nem o garfo, nem a panela de 3 pernas, nem o candeeiro, nem aquele lume... mas existem as histórias, as imagens, os cheiros, os sentimentos…tesouros que guardo em baús edificados no meu Templo Interior.