sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

"A caminho de Sta. Bárbara" - 2ª Parte, por Maria Cristina Quartas


Seis horas da manhã. Levantávamos em silêncio e metíamo-nos do Volkswagen cinzento, carregado com as malas para todo o tempo que íamos estar na aldeia.

A viagem era longa - 8 horas. Oito horas de caminho até à aldeia das Mós. Oito horas a caminho de Sta. Bárbara.

As estradas eram em paralelo. Estreitas e cheias de curvas. Íamos por Mesão Frio, Régua, Horta, Murça, Touça... em direcção a Vila Nova de Foz Côa.

Parávamos várias vezes pelo caminho para arrefecer o carro, fazer “chichi”, merendar e descansar um pouco de estar sentados.

Pelo caminho, acima da Régua, encontrávamos recantos maravilhosos para merendar.

Nesses lugares, havia espaço para estacionar o carro.

Uma ou duas mesas, bancos de pedra e uma fonte, que eram autênticas obras de arte. Em pedra trabalhadas e com água pura das nascentes que esvaiam pelos montes - fresca, límpida e leve.

A mãe fazia bolinhos de bacalhau, frango estugado, bacalhau frito. Levava sempre também, um tacho de arroz, que era envolvido em jornal, para se conservar quente até à hora da refeição (tinha um sabor especial. Muito bom mesmo!).


Pelo caminho comprávamos regueifas em Paredes para levar à tia Maria, ao Tio Ivo e ao Tio Elísio. Era melhor que pão de ló, o pão da cidade!

Parávamos sempre nos locais certos. Eramos pontos que o pai demarcava como pontos de referência: para descansar, comer e saborear as paisagens dos vales e do rio Douro.


Eram sempre os lugares mais aprazíveis do caminho. Acima da Régua, na berma da estrada, ao lado do rio Douro, havia lá uma fonte com água muito fria. Mesmo gelada em pleno Verão quente.

Enquanto comíamos conversávamos. E eu e o meu irmão estávamos sempre com as traquinices de criança.

Mesmo à hora das refeições havia disputa entre nós, pelo pedaço mais apetecível. “Come rapaz, deixa de ser invejoso. Sais ao teu tio. Oh, que raio de feitio!”.

Sentia-me invadida pelo meu irmão, mas não gostava que o meu pai dissesse aquelas coisas. Havia uma relação de amor e ódio. Mas as disputas e competições eram também uma forma saudável de nos relacionarmos. O desafio pela competição mantinha-nos unidos.

Naqueles recantos de descanso, vivíamos alguns momentos fantásticos!

As águas do Douro eram calmas e serenas. Pequenas ondulações bailavam ao longo do seu leito a caminho da sua nascente. “Mãe porque é que o rio anda para trás?”. A minha mãe sorria e dizia que as suas ondinhas eram “carneirinhos” da água!

De repente, ouvia-se o assobio afunilado e prolongado dum comboio, movido a carvão e o barulho da sua engrenagem nas linhas que contornavam as serras no outro lado da margem do Douro, ao longo do seu leito: um comboio a caminho de Barca de Alva!

Entre as margens do rio, planava um espelho de águas límpidas, que reflectia a beleza de toda a natureza serrana. O rio tinha vida, na imagem em movimento do lagarto vermelho a fumegar (uuuuu.. ttt ttt ttt tt u-uu- ttt ttt ttt uuuuuu).

Parávamos a olhar o comboio que, de repente, aparecia dum buraco escavado no monte e descrevia harmoniosamente as curvas e contra curvas do relevo irregular da base da encosta. Parados a admirar a lagarta fumegante e dizíamos-lhe “adeus” acenando.

Parecia que nos entendia com a sua linguagem locomotiva e nos sons que emitia. “Um comboio feliz a deambular graciosamente e que passava ali só para nos ver!”, pensava eu, sempre que lhe acenava e ele correspondia com o seu apitar de contentamento.

Depois de merendarmos, guerrearmos e sentirmos o aconchego do carinho dos pais, lá seguíamos a viagem ao encontro de Sta. Bárbara.

Normalmente, eu e o meu irmão dormíamos uma boa parte do caminho.

Regressávamos ao carro para prosseguir a viagem. No banco era demarcado o meio do assento, e só era permitido transpor aquela linha se fosse para dormir. Eram as regras do nosso jogo. O meu irmão fazia as regras, e era muito exigente comigo. O único que tinha excepções era ele. Porque afinal, ele era o dono dos jogos!

Os primeiros sintomas da aproximação da aldeia eram os cheiros a fumados. Andávamos quilómetros sem fim para encontrar um aglomerado de casinhas rusticamente portuguesas. Pela estrada lá iam aparecendo uns velhinhos agarrados a um pau, outros sentados às soleiras das portas. As crianças brincavam à bola e às caçadinhas na estrada. Um burrinho carregado de ramos secos, ou dois cestos de fruta. Pela estrada fora, éramos surpreendidos com as mais variadas coisas inesperadas: um coelho a atravessar a estrada, uma raposa, uma cobra, uma águia…

Havia uma coisa particular, perdida nos montes desertos, que eu gostava muito: eram umas casinhas pequeninas brancas. Umas eram pombais (construção branca com design redondo, tipo moinho, com telhado raso inclinado). A finalidade daqueles espaços era a recolha de excrementos dos pombos para adubar as terras. Com uma estrutura arquitectónica planeada, eram construídos de forma a que os pássaros fossem lá alimentar-se de cereais colocados e, ao mesmo tempo, depositassem os seus excrementos. Essa matéria era recolhida, e era o adubo daqueles povos isolados nas aldeias vizinhas. Por outro lado, servia também de resguardo e armazenamento da agricultura periférica.

Um outro tipo de construção típica era as casas dos cantoneiros. Havia umas casinhas com um espaço pequeno (4 paredes e apenas uma entrada, com um banco em pedra ou de cimento junto à parede interior). Situava-se nas bermas das estradas e tinham como finalidade resguardar os trabalhadores da rodoviária, naqueles lugares desertos, das intempéries e também servia para descansarem e fazerem as suas refeições.

Passávamos em zonas que pareciam autênticos paraísos por meios dos montes e das montanhas. Havia zonas muito rochosas. Lembro-me de ver uns grandes penedos que pareciam bolas gigantes! Nas mais variadas posições pareciam ter sido postos ali por um ser gigante.

Muitas vezes encostados por uma pequena ponta numa encosta do monte. E eu perguntava à minha mãe, se aquele rochedo não ia deslizar pelo monte abaixo! A minha mãe dizia que a Natureza era linda e que o milagre dela estava na sua beleza e nas coisas que pareciam impossíveis.

Grandes campos cheios de plantas silvestres: amarelas, brancas, lilás, castanhas, beges e verdes. Umas vezes grandes planícies: Outras vezes, montes enrugados. As montanhas alongavam-se na plenitude do azul do céu. Uma vez com ondulações suaves, outras em formas crispadas cortadas por vales profundos e sinuosos.

Nas entranhas desta maravilhosa Natureza, o rio Douro infiltrava-se rasgando veios em todas as direcções.

Fazíamos dezenas, centenas de quilómetros percorrendo estradas cavadas naqueles vales sem fim.

As sensações ao longo desta viagem eram muitas. Uma vezes siderados, outros amedrontados, outras surpreendidas, com as mais variadas surpresas selvagens e da vida transmontana.

Uma pequenina fonte situava-se na berma da estrada do lado esquerdo. Um muro baixinho de pedras transmontanas caiadas de branco desenhava uma meia-lua.

Era o penúltimo ponto de paragem obrigatório. O carro parava e saíamos.

Os ouvidos estavam meio surdos e sentia-se um zumbido confuso na cabeça.

O silêncio era imenso. Ouvia-se um leve piar dum pássaro vadio e um “gri gri” dum qualquer animal.

Respirávamos fundo e esticávamos os braços e as pernas do tamanho da paisagem que dali se avistava.

Lá longe, um aglomerado de casas. Finalmente, Freixo de Numão!

Mais meia hora apenas, e já estaríamos no Largo das Devesas (no lindo Largo das Devesas).

Àquela hora, já a tia Maria estaria à nossa espera, com um saco de grão, maçãs perfumadas e uma velha garrafa de azeite.

No rosto do meu pai sentia-se uma felicidade imensa. Esquecia os problemas, as doenças, as dificuldades da vida. As Mós era o seu aconchego, o seu verdadeiro espaço. Era o paraíso onde queria estar no momento da sua partida.

Respiramos já um pouco do ar das Mós e de Freixo de Numão. Era um cheiro diferente. A água da fonte da Horta, tinha também já o sabor das Mós e de Freixo de Numão. E até a terra do chão tinha já vestígios daquele lugar!

Horta começava a ficar para trás, e logo a segui Murça, Touça… Uma grande placa apontava Vila Nova de Foz côa. Não, não era por ali. Virava-se à esquerda em direcção ao verdadeiro paraíso dos sonhos do meu pai.

O terreno era plano. Longas planícies airosas e muito cuidadas – Freixo de Numão à vista!

No Largo das Devesas, lá estava a Tia Maria com o saco na mão e os braços abertos à espera de abraçar a sua irmã.

Os abraços eram sempre muitos e as lágrimas também. Por fim, a tia dava o seu saco, e o pai entregava-lhe a regueifa cansada da longa viagem.

O “adeus” era até breve. “Oh Fernanda vinde para aqui. O Antoninho gosta de vos ter cá mulher! Já temos as alheiras defumadas e o presunto já esta bom na salgadeira… Oh catano! Tem algum jeito aquilo lá nas Mós?! Oh que raio de terra triste! Nunca por lá passou Cristo! Vinde mas é para aqui com as crianças que andam à vontade e temos televisão“ (era a preto e branco e só tinha a RTP1).

Por vontade da minha mãe, ficávamos ali mesmo e nunca mais dali sairíamos.

Mas o destino não era aquele. Por isso, havia que seguir caminho.

As lindas paisagens planaltas começavam a ficar para trás. Aquela estrada velha e estreita era a que ia para a estação do caminho de ferro de Freixo de Numão.

Os barrancos eram agora mais sombrios, mais estreitos. Passávamos a pequena aldeia de Seixas e pouco mais adiante uma seta à direita “MÓS”.

Contornávamos a ferradura fechada e sobre socalcos de terra batida seguíamos a caminho das Mós, a caminho de Sta. Bárbara.

Parecia que nunca mais lá chegávamos. Nem vestígios de alma viva! Passávamos os últimos montes até lá chegar. Passávamos em frente ao Bacelo, e ao virar do 3º monte, no útero de todas as montanhas e vales do mundo… na terra onde nunca passou Cristo… lá estava a pequena e linda aldeia das Mós.

Ainda da estrada, quando já se começava a avistar a capelinha lá no alto, perto do céu e dos Deuses… a Sta. Bárbara!

Um pouco mais abaixo, na encosta do recinto do encontro do Deuses, uma sólida casa de pedra cinzenta irregular e dois telhados bicudos, de telha alaranjada, da Fábrica de Cerâmica de Ermesinde: a casa do Vale Trigo.

O pai dava 2 buzinadelas e, do outro lado do vale, num alto apogeu, o tio Ivo acenava de contentamento.

Enquanto o carro seguia, os “adeuses” eram muitos. Via a minha prima Luzinha, depois o primo Alfredo e a tia Alda… Era o momento do reencontro. O momento em que tudo ficava para trás.

Na terra “onde nunca passou Cristo”, não haviam horas, não havia passado nem futuro. O tempo era só um. O tempo que ficou eternizado há 50 anos atrás. Era inconfundível o cheiro e as pessoas. O ar, os montes, o céu, o sol….

O Adérito Afonso Quartas estava a chegar. O carro que se via na estrada, era o do Adérito. “Eles vieram para a Festa!. Estão cá com os pequenos mais novos a passar férias. Ah se o Manuel Quartas fosse vivo! Que alegria seria!”

No Largo do Terreiro, um grande olmo centenário (190 anos) cobria o largo todo. Sentados num murinho baixo, que contornava o largo, ali estavam com as pessoas do costume. O pai punha-se a mencionar os nomes “tio Elísio Reto, Ivo, Amadeu Andrade, José Bichança, Zé do Burro, Tiaita, primo Manuel, Varandas”.

Na fonte, as mulheres esperavam a sua vez de encher os cântaros (Luz Tosca, tia Maria, Alda, Humera). As crianças começavam a aparecer e corriam em direcção ao carro. O pai parava ali mesmo no centro do Largo do Terreiro e ficávamos rodeados de crianças. Punham a mão nos vidros, sorriam, chamavam: “Oh menino, anda brincar connosco”. “Como te chamas menina? Olha que lindo vestido ela tráz! É filha do primo Adérito Quartas! É nossa prima. É Quartas também!”.

Atravessávamos a Aldeia em direcção ao Castelo. Em direcção a Sta. Bárbara.

Por caminho de cabras, por entre oliveiras, amendoeiras e poeirada gincavamos até à casa do Vale Trigo.

Finalmente! Finalmente chegávamos ao destino.

“Pronto, já cá estamos!”

À entrada da porta havia ervas enormes… secas. “Cuidado com as cobras Adérito” dizia a mãe. Com uma chave enorme em ferro preta, abríamos a porta.

Pelo “buraco do gato” algum pó e ervas tinham entrado.

Antes de colocar as malas, havia uma limpeza geral: abríamos as janelas, sacudíamos os colchões, abríamos a mala da sala e colocávamos os cobertores na varanda a “tomar ar”.

Já tudo estava nos sítios e o tio Elísio Reto (Elísio Diogo) milagrosamente aparecia. Levava 2 cântaros de água. “Oh tio Elísio, como soube que cá estávamos?!”

“Pois então, eu sou adivinho! Então não sei se vocês estão aqui?! Toda a aldeia já sabe.”

Uma voz muito fininha e fresca “tio Adérito! Oh Cristina. Prima!”. Era a Luzinha.

A luzinha era a minha prima favorita (Maria da Luz). Éramos muito parecidas. Logo atrás, vinha o Alfredo “Então prima!”. Alto, moreno, um sorriso aberto e os olhos a brilhar “Atão prima, já cá estás? Quando vais embora? Vindes para a festa, não vindes? Este ano é que vai ser bonita! Vai cá estar um conjunto e vem a banda dos músicos de Ferreirim. Ides ficar cá algum tempo, não?”.

Por vezes, ficávamos a olhar apenas uns nos outros. Não havia palavras. Não saiam, porque o sentimento era forte e apenas era “bom, muito bom”. Bom de sentir os primos, das nossas idades… e saber que ali iam para nos dar as boas vindas e mostrar a sua alegria de ali estarmos.

O sol começava a esconder-se. Longas manchas de sombras começavam a tapar os montes. “Vá, vamos embora. Daqui a pouco é noite e não vemos o caminho.” E lá se iam embora os primos que eu queria tanto que ali ficassem connosco para brincar! E ali ficávamos nós os quatro, naquele silêncio absoluto. Longe de tudo e de todos.

Estava calor. Muito calor.

Sentavamo-nos no pátio cimentado, junto ao caminho do Vale Trigo, nuns bancos compridos em madeira, pintados em vermelho, que o pai tinha feito.

Calados. A ouvir o silêncio.

A mãe gostava de se sentar num banquinho pequeno, e com uma toalha sacudia as moscas, que eram às dezenas (e chatas!). Enquanto se defendia das incómodas visitantes fazia um pouco de aragem.

O pai muito calado, sentado de pernas cruzadas e mãos sobrepostas no colo. O seu olhar era um misto de alegria e de profunda tristeza “É aqui que eu quero estar, porque não vou durar muito tempo” dizia ele com um ar pensativo!

Os dias repetiam-se numa paz e silêncio imensurável.

Não tínhamos televisão, não tínhamos luz.

Os únicos movimentos que ali havia a passar, eram sempre os mesmos – Amadeu Andrade com o seu macho, Tiaita e José Bichança com os rebanhos. Todos os dias ali passavam pela manhãzinha e ao fim da tarde.

Mas havia um transeunte especial - o António Calça.

Na albarda do seu burrinho, trazia um grande cesto em cada lado cheio de uvas e parras, figos e laranjas. A mulher ia sentada de lado, junto aos cestos. Enquanto o seu marido seguia em pé à frente do animal, segurando a corda que prendia. Compassadamente desciam o caminho, enquanto o andar do animal fazia embalar toda a mercadoria que trazia ao lombo. “Oh Adérito! Grande amigo! Então já vieram do Porto? Vão cá estar muito tempo? Vou mandar cá o meu Zé Luis com uma mão cheia de batatas e algumas cebolas. Já vos dá para uns dias!”. Em troco das boas palavras daquele homem, o pai oferecia-lhe um (ou dois) copos de vinho. Num golo só, entornava o copo e com os olhos cheios de lágrimas dizia “Oh Adérito, grande amigo, eu gosto de vocês, como gosto da minha família. Ah Catano! Quando aqui passo, e vejo as portas fechadas e as ervas nos telhados e nos canteiros, eu digo cá para comigo: tenho saudades deste amigo. Anseio por lhe dar um abraço!”

Sentava-se ali connosco no banco comprido de madeira vermelho a descansar da caminhada que trazia. Descansava e abria a sua alma… uma vontade imensa de partilhar os seus sentimentos bons de amizade – pura, genuína.

Um homem simples, bom, sensível e muito falador. Enquanto falava, limpava os olhos que não conseguiam deixar de transparecer o sentimento e que o transpunha nas suas doces palavras.

Os dias repetiam-se e eu via o meu pai, cada minuto que passava, feliz. Cantarolava, assobiava… músicas do seu tempo, que certamente o faziam sentir vivo, como quando tinha 17 ou 10 anos de idade.

Andava dum lado para o outro, a dar os últimos retoques de tinta nas portas, nas janelas. Tirava as ervas todas em volta da casa, e cuidava das pedras desalinhadas ali em redor.

Levantava-se muito cedo e à noite ficava a olhar as estrelas até contá-las todas.

De vez em quando, ia à janela ou à varanda do quarto e ficava a contemplar as paisagens como se fosse o último momento da sua vida. E antes de regressar para dentro, dava um suspiro profundo e prolongado com os olhos fechados.

Mas havia alturas também, que fazia um silêncio profundo. E ficava apenas com um olhar parado, distante e triste…

Muitas vezes, a mãe dizia “Oh homem, pára um bocado!” e ele respondia com um ar de graça e de ironia “O tempo é pouco! Precisava estar aqui mais tempo”.

Tanto a mãe como nós achávamos que era tempo a mais de isolamento e descanso. Achávamos que o pai exagerava nas lidas e cuidados com aquela casa perdida no meio dos montes.

Mas não tínhamos alternativa: ali estávamos à espera do último dia de férias e da recolha da N. Sra. da Soledade à capela de Sta. Bárbara.

Passados três anos o pai morreu.
Aos poucos e poucos, o António Calça, o Tiaita, o José Bichança… também deixaram de lá passar.
E o caminho de Sta. Bárbara deixou de ter o encanto que tinha.

Foi preciso passar muitos anos, para eu sentir coragem de lá voltar. E o que eu receava, tinha medo... aconteceu. Não vi as fontes, não vi o comboio, não vi os cheiros, nem o saco no Largo das Devesas, nem o olmo, nem os bancos compridos de madeira vermelhos… nem a tia Maria, nem o tio Elísio, nem o tio Ivo, nem os amigos do meu pai. Não vi nada que reconhecesse ou marcas do que tinha visto há trinta anos atrás.

Apenas lá no alto, Sta. Bárbara continua como testemunha de que foi aquele o caminho feliz que percorri um dia.

Sabermos amar cada momento bom da nossa vida e vivê-lo intensamente o melhor possível, como se fosse o último. É sem dúvida alguma, a forma mais bonita e inteligente de se viver. Nunca sabemos quando partimos. E só nos apercebemos do real valor das coisas, quando já não as temos.

Cada momento é único e nunca mais se repete.

O meu pai sabia disso!



Maria Cristina Quartas

Fevereiro 2010

NOTA: Deixo o meu agradecimento, muito particular, ao amigo Mário Anacleto porque foi a fonte da minha inspiração para escrever este texto.


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A caminho de Sta. Bárbara - 1ª Parte, por Maria Cristina Quartas

Quando as férias grandes estavam a chegar, em casa não se falava noutra coisa a não ser no mês e meio que íamos passar na aldeia.
Estar longe dos hábitos do dia-a-dia, estar em contacto com a natureza e rever os familiares mais próximos e velhos amigos, era pois, a maior alegria do meu pai. As férias eram assim, sempre motivo para bons encontros.

Embora a minha mãe não gostasse de estar isolada (“Em terras por onde nunca passou Cristo! E afastada de tudo e de todos!” - como ela dizia) e longe da nossa casa em Rio Tinto, também aproveitava estas viagens para ir visitar a sua irmã (a tia Maria) a Freixo de Numão. Terra onde a sua mãe (minha avó materna) nasceu.

Era muito forte o vínculo que o meu pai tinha com as suas reminiscências. Contava histórias antigas e dos seus tempos de menino-moço. Repetidamente o fazia, e sempre com o mesmo entusiasmo como se fosse a primeira vez.

Tinha um sentido de laços familiares muito forte. Falava de primos afastados, muitos dos quais nem conhecia, mas o seu zelo e cuidado em querer saber deles, era tão grande quanto dos familiares mais próximos.
Na nossa casa em Rio Tinto, as portas estavam sempre abertas para receber de bom agrado os Quartas, Retos, Quadrados, Reis, Brilhantes, e outros parentes com apelidos bem originais!
Na aldeia os serões eram longos, a falar nos que já partiram, a recordar momentos antigos e a actualizar as novidades da família.

Dentro dele havia um tempo vivo guardado, que o acompanhou ao longo da sua vida.
Veio para o Porto muito novo, à procura de melhor sorte do que a vida no campo - aos 17 anos de idade. E por cá ficou. Mas nunca perdeu as afeições das suas raízes. De tal forma que, apesar de ter saído tão novo da sua aldeia, conservava ainda a pronuncia da sua terra Natal, bem como pequenos hábitos provincianos.

Os meses de Agosto e Setembro eram os melhores. Os primos regressavam ao Douro, nessa altura, vindos de Lisboa e de França.
Agosto era o mês dos reencontros, das férias, dos casamentos. Setembro era o mês da apanha da amêndoa e das vindimas. Mês das festas/romarias (festas nas 7 serras). O 3º Domingo de Setembro era o eleito - dia da N. Sra. da Soledade nas Mós.

Sempre que podia ía “à terra” ver os pais e o irmão (tio Ivo). Quando isso não era possível, as cartas mantinham a boa tradição do contacto (“Querido irmão, espero que ao receberes esta, te encontres de perfeita saúde que eu, graças a Deus, estou bem…” - Era este o refrão do início das linhas que os unia).

Tinha eu 4 anos de idade, quando o meu avô (Manuel Quartas) faleceu (em 1970). Uma figura meiga e educada. Um bom homem! - Alto, magro, de bigode e sempre de chapéu.
Do que a minha memória se lembra (talvez das minhas lembranças mais remotas), tinha eu 2 ou 3 anos de idade (se muito)… estava sentada no colo do meu avô a olhar para o candeeiro em cima da mesa a observar a chama e a sentir o cheiro forte a petróleo. O meu avô estava a fazer o “pico pico sara bico” nas palmas da minhas mãos e afagava-mas com os seus dedos longos, duros e quentes. Conservo essa imagem com muita doçura e ternura.

Após a morte do meu avô Manuel Quartas, a minha avó foi viver para junto do tio Elísio Diogo (conhecido por Elísio Reto, seu tio– meu tio avô), no lugar do Castelo, junto ao cemitério da aldeia.

Passado um ano da morte do meu avô, o meu tio Ivo fez uma casa. Situada num ponto alto da aldeia. Foi das primeiras casas revestidas em cimento e pintada de branco e amarelo. Era um apogeu!
Da estrada, a sua casa era um belo Miradouro, coberto por uma ramada de uvas brancas e tintas.
A Avó, por fim, quis ir viver para junto do seu filho. E ali ficou, até aos últimos dias da sua vida.

Até 1977, ano que morreu a minha avó Augusta, as nossas férias eram repartidas entre as Mós e Freixo de Numão, em casa da tia Maria e do Tio Antoninho (conhecido com a alcunha de António Belsas).

As partilhas foram feitas. O pai ficou com a casa dos avós e com o prédio do “Bacelo”. Era um terreno longe da aldeia, lá numa encosta dum monte (situado no 3º morro antes de lá chegar). Tinha 11 oliveiras e 62 amendoeiras.

Agora tínhamos casa para passar as férias na aldeia. Era uma boa casa construída toda em pedra atravessada (tinham 60 cm de largura. Tinha cave com lagar e estábulo do cavalo, um palheiro e um pedaço de terra).
A casa ficava bem localizada. Foi construída num ponto muito alto, já fora da aldeia. Avistava todo o povoado, a estrada principal e as serras de Seixas, Freixo de Numão e Vila Nova de Foz Côa.
Situada no caminho para a Sta. Bárbara (a serra mais alta de onde se avistava as 7 serras). Era o Caminho do Vale Trigo.

O pai mandou arranjar a casa ao tio Ivo: caiou-a, arranjou o telhado, colocou janelas novas, forrou tectos, cimentou o pátio de entrada e o palheiro. Comprou camas de ferro, mesinha de cabeceira, 1 louceiro, 1 cómoda, 1 arca, 1 masseira, lavatórios de ferro com bacia e jarro, louças, cobertores da serra, etc.
Fez questão de conservar o rústico e o tradicional, mesmo com os móveis e os pequenos utensílios.
A casa tinha boas condições. E só em 1980 é que foi colocada a luz na aldeia. Não havia canalização. A bica do Terreiro era a fonte que servia toda a aldeia.

O Tio Elísio Reto combinou com o pai levar no seu burrinho 4 cântaros por semana, a troco de 20 escudos.
A água por vezes era pouca. E tínhamos de a economizar o mais possível. Uma bacia com 2 púcaros de água era o suficiente para tomar banho. Um pano bem espremido era passado em todo o corpo. A cara era a primeira a ser lavada. Depois o resto do corpo, segundo uma ordem.
A água que ficava na bacia, servia muitas das vezes para lavar pequenas peças de roupa e só depois era colocada num balde que tinha ainda outros fins variados.

Julho de 1977. As férias grandes estavam à porta. O entusiasmo não era o mesmo do que nos anos anteriores. A avó Augusta tinha morrido e o meu pai estava muito doente – tinha sido detectada uma cirrose hepática e os médicos davam-lhe apenas alguns anos de vida.
Contudo, as férias foram planeadas de igual forma.

(Continua)

Maria Cristina Quartas
Fevereiro 2010

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

"O beijo", por Maria Cristina Quartas

A escultura “O beijo” (1887), do artista francês Auguste Rodin


Hoje vamos falar sobre o “BEIJO”.

“Ora aqui está um tema de real interesse!” - Pensam os amigos que me estão a ler.
Pois bem, quem não gosta de “beijos”, mesmo que de “beijinhos” se tratem?! Sejam eles um simples toque de lábios, ou um gesto mais prolongado de sensualidade…seja dado como forma de cumprimento, ou como manifestação dum sentimento.

Talvez nunca tenhamos pensado porque é que o “beijo” é algo tão bom, tão gostoso. Porque será que este simples gesto alenta corações, faz sorrir e tantas vezes é um acto milagroso entre duas almas mais azedadas?
Dar beijinhos, receber beijinhos… alguns pessoas são verdadeiramente “artistas” na arte de beijar. E outras, nem por isso, mas mesmo assim, não ficam indiferentes a uma “boa beijoca” ali mesmo na hora “H”!

Será que há técnicas para um bom beijo? Mas afinal, o que é o beijo: o simples gesto do toque da boca ou algo mais? E porque será que um beijo roubado por vezes sabe tão bem? Porque é que os beijos, sendo eles todos dados da mesma forma (mais ou menos) têm significados e proporcionam sensações tão diferentes?

Ora vamos lá esmiuçar isto dos “beijos”, “beijinhos” e “beijocas” para entendermos melhor este nosso tão simples gesto e também ficarmos a saber apreciá-los mais e melhor!... e desta forma então, sermos capazes de surpreendermos alguém no momento exacto! Afinal, o beijo tem a sua arte, e é importante sabermos apresentá-lo consoante as circunstâncias e intenções.

Desde muito cedo, a boca é a primeira fonte de prazer. Com poucas semanas apenas de vida, além de algumas expressões faciais, provocadas pelos movimentos musculares, as papilas gustativas já estão desenvolvidas. As investigações têm demonstrado que o feto faz careta e pára de engolir quando uma gota de substância amarga é colocada no líquido amniótico. Por outro lado, uma substância doce provoca a aceleração dos movimentos de sucção e deglutição.

Aliás, o prazer do paladar continua na fase em que o bebé se amamenta através do mamilo da sua mãe. Daí para frente, o paladar fica cada vez mais apurado.

A boca é uma das partes que compõe o rosto de qualquer pessoa. Quanto a isto, não restam margem para dúvidas. A zona bocal é a última parte a adquirir todas as formas e recortes finais, embora seja a primeira a sentir as emoções iniciais da vivência.

A língua é a base de todo o paladar e a boca é uma das partes mais sensíveis do corpo e mais versáteis. Um beijo combina os três sentidos de tacto, paladar e olfacto.

O acto põe em acção diversos músculos, cujo número varia em função da intensidade: um beijo carinhoso mobiliza 17 músculos; um mais apaixonado pode chegar aos 29, segundo a tese de doutoramento em Medicina da francesa Martine Mourier, que dedicou as duzentas páginas do seu trabalho aos efeitos do beijo.

Outras revelações: a pressão exercida pode atingir os 12 quilos, os batimentos cardíacos disparam dos 70 para os 150 por minuto. Na troca de saliva são trocadas pelos menos 250 bactérias, usada 9 miligramas de água, 18 de substâncias orgânicas, 7 decigramas de albumina, 711 miligramas de materiais gordurosos e 45 miligramas de sais minerais.
Favorece portanto o aparelho circulatório e beneficia a oxigenação do sangue.
Interessante não é?

O encanto do beijo não está apenas no simples ato ou efeito de pressionar os lábios ou nos movimentos de sucção sobre qualquer coisa ou pessoa.

Vamos ver um pouco da sua história:
Os mais antigos relatos sobre o beijo remontam a 2.500 a.C., nas paredes dos templos de Khajuraho, na Índia. Diz-se que na Suméria, antiga Mesopotâmia, as pessoas costumavam enviar beijos aos deuses. Na Antiguidade também era comum, para gregos e romanos, o beijo entre guerreiros no retorno dos combates.

Era uma espécie de prova de reconhecimento. Aliás, os gregos adoravam beijar. Mas foram os romanos que difundiram a prática. Os imperadores permitiam que os nobres mais influentes beijassem seus lábios, e os menos importantes as mãos. Os súbditos podiam beijar apenas os pés. Eles tinham três tipos de beijos: o basium, entre conhecidos; o osculum, entre amigos; e o suavium, ou beijo dos amantes.

Na Escócia, era costume o padre beijar os lábios da noiva ao final da cerimónia. Acreditava-se que a felicidade conjugal dependia dessa benção. Já na festa, a noiva deveria beijar todos os homens na boca, em troca de dinheiro. Na Rússia, uma das mais altas formas de reconhecimento oficial era o beijo do czar.

No século XV, os nobres franceses podiam beijar qualquer mulher. Na Itália, entretanto, se um homem beijasse uma donzela em público, era obrigado a casar imediatamente. No latim, beijo significa toque dos lábios. Na cultura ocidental, ele é considerado gesto de afeição. Entre amigos, é utilizado como cumprimento ou despedida; entre amantes e apaixonados, como prova da paixão.

Mas é também um sinal de reverência, ao se beijar, por exemplo, o anel do Papa ou de membros da alta hierarquia da Igreja. No Brasil, D. João VI introduziu a cerimónia do beija-mão: em determinados dias o acesso ao Paço Imperial era liberado a todos que desejassem apresentar alguma reivindicação ao monarca. Em sinal de respeito, tanto os nobres, como as pessoas mais simples, até mesmo os escravos, beijavam-lhe a mão direita antes de fazer seu pedido. Esse hábito foi mantido por D. Pedro I e por D. Pedro II.

No que concerne à química do beijo:
O beijo estimula a liberação de hormonas que causam bem-estar.
As terminações nervosas reagem ao estímulo erótico e promovem uma reacção em cadeia. Ao mesmo tempo, as células olfactivas do nariz – mais próximas da boca – permitem tocar, cheirar e degustar o outro.
Beijar activa a libertação de feromonas que, são percepcionadas pelas mulheres de forma inconsciente, na escolha dos parceiros e que portanto, desempenha um papel fundamental na atracção sexual.
Então ai, se entende porque atrás dum beijo vem outro outro e mais outro… e dificilmente se consegue parar!

Relativamente ao simbolismo do “Beijo” pode ser visto pelas várias perspectivas. Pois tanto beijamos por paixão, educação, costume, mas também por respeito ou até por mera formalidade. A própria forma como beijamos varia de acordo com o que queremos expressar.
Naturalmente o beijo torna-se diferente nas suas significações segundo a zona beijada e a ocasião em que este se efectua.

Quanto ao “bom beijo” entre dois enamorados… a sua arte não está na técnica ou na habilidade do seu acto. Muito mais que isso…

Quando se trata de temas, como este, que envolve muitas teorias (e por sinal todas elas interessantes) eu gosto de ser mais pragmática. E vejo as coisas duma forma mais simples e prática (desculpem os amigos!).
Um beijo é muito mais que lábios fundidos ou línguas entrelaçadas. E até mesmo que libertação de hormonas….
Um beijo sem um olhar, sem verbalização, sem um toque no corpo... é a mesma coisa que comer um belo manjar só com a boca, sem paladar e sem cheiro. Um autentico desconsolo!...

Na minha modesta opinião, acho que se beija muito e com má qualidade hoje em dia, lá com as modernices das relações casuais e de rápido consumo… E entre duas pessoas quando o beijo não funciona!...

Acredito que qualquer pessoa pode “beijar bem” e até prender o outro com um beijo. O tal beijo fatal, que prende e apaixona!… Quer se tenha lábios grossos ou finos, língua mais ou menos ágil, boca maior ou menor…
O que é preciso, é saber criar o desejo, criar estimulo…
Olhos nos olhos, mãos suadas, coração acelerado, respiração folgante, lábios hesitantes. Tensão e emoção. Que maravilha!....

O beijo é bom sem dúvida. Mas o seu encanto está na magia, na sedução envolvente, entre duas almas que se querem tocar saboreando-se com os prazeres da volúpia e sensualidade na sua tri-dimensão: espiritual/psicológica/fisica.

Maria Cristina Quartas
Fevereiro 2010

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

"Momentos majestosos", por Maria Cristina Quartas



Mós, Setembro de 1974


Naquela manhã o meu acordar foi diferente.

O galo da D. Susana deu os “bons dias” mais tarde e não esperou pelas pausas do silêncio para se fazer ouvir, como de costume.

O macho do Sr. Amadeu Andrade também não tinha feito o seu solene sapateado nas pedras do Vale Trigo.

Nem as ovelhas do Sr. Bichança tinham levantado o pó seco e feito a sua garraiada desafinada naquele caminho.

O sol estava preguiçoso. E até a aragem estava com menos vida.


O despertar da aldeia, desta vez foi após as 7 baladas da Ave-Maria da igreja do largo do Terreiro. Algo diferente se passava. Sentia que algo de estranho teria ou estava para acontecer.


Um pouco intrigada, levantei-me sem os rituais do costume.

Antes de calçar os sapatos bati um no outro e sacudi-os bem (não fosse algum lacrau meter-se lá dentro e seria fácil não o ver – como a mãe sempre alertava).

Entrei na sala ao lado, que tinha o alçapão e tecto forrado. E pressenti a presença da minha mãe ali junto à porta que dava para o pátio e para a cozinha.


A mãe estava a arranjar peixes do rio, trazidos pelo Sr. Idérito, do rio Douro, no dia anterior ao fim da tarde.

Em pé, junto ao muro que dava para o prédio ao lado e ficava à face do caminho do Vale Trigo, mergulhava numa bacia as postas ensanguentadas na água gordurosa avermelhada e cheias de escamas, enquanto impacientemente algumas abelhas, muitas moscas e varejas observavam a oportunidade de lhes pousar.


Na sala, havia uma mesa grande de madeira coberta por uma toalha de plástico comprada no “sótão” do Sr. José Castedo. No seu centro, havia uma cafeteira da cevada a fumegar, rodeada de algumas canecas com o desenho do cavalinho. Uma caixa de Lorenin e outra de Lexotan. Um enorme pão de centeio da Horta e meio pão de 4 cantos de Padronelo; um pedaço de queijo de cabra; 1 pacote de Planta; um prato com bêberas (figos pretos), junto a 2 grandes cachos de uvas moscatel dado pelo Sr. António Calça numa das suas passagens ali no caminho do Vale Trigo em direcção ao rio Douro.


Meti a mão por entre as fitas plásticas coloridas da porta e aproximei-me da minha mãe.

Dei-lhe os “bons dias” e perguntei pelo meu pai.

“Bom dia filha. Dormiste bem? O paizinho está ali em cima na Corte Queimada, atrás daquele palheiro. Eu bem lhe disse para não comer tantas uvas ao jantar… passou mal a noite toda e agora foi ali em cima para estar mais à vontade… Eu também não estou bem, contínuo com esta dor de cabeça. Falta-me o ar… Este tempo dá cabo de mim. Este ar seco já há 3 dias ameaça mau tempo! Quando ele rebentar, vai dar cabo disto tudo. O povo assim nem vai às vindimas, nem o pastor sai com o rebanho. Eles conhecem bem o tempo!… e é disso que eu tenho medo. Ainda cai aqui algum relâmpago e fica p’raí tudo a arder…. Não temos água… O tio Elísio até já avisou, que só para amanha é que nos traz 2 cântaros. A fonte só deita um fiozinho de nada. As mulheres estão lá a noite toda à espera de vez. Temos de poupar a pouca que temos. Eu queria ir embora, mas o paizinho adora isto! Não sei o que estamos aqui a fazer! Se ainda estivéssemos em Freixo!.... A tia Maria quer que lhe faça uma saia duma fazenda que lhe dei para aí há 10 anos… e há 10 anos que lhe prometo que lha faço!”


Sentia a minha mãe nervosa e angustiada.

Era sabido que ela não gostava de estar nas Mós. Mas a sua ansiedade era de tal forma que, sem querer, transpunha para mim toda a sua aflição e nostalgia.


As trovoadas eram medonhas… E mais ali, junto aos pés da Sta. Bábara, em que os montes formavam um cova funda e abrigavam os ecos tortuosos dos relâmpagos de todos os montes ali em redor.

Naquela altura do ano, estava tudo seco. E não havia qualquer filtro para os raios do trovão. E já não era a 1ª vez, que ficava a arder um palheiro ou um campo com erva bravia, por causa dos incêndios provocados pelos relâmpagos.

Em redor da aldeia, era difícil lá chegar. Não havia caminhos. Não havia bombeiros. Não havia água.

E se o pai piorasse ou se sentisse mal? Quem o levaria a um médico? Quem estaria disponível no povo? Andava tudo à vinha e à amêndoa! O único médico que havia era em Foz-do-Coa. Que ficava a 40 Km. Tínhamos que ir a Freixo de Numão. Era perigoso com o mau tempo andar de carro naquelas estradas muito estreitas e cheia de curvas, que muitas vezes ficavam interditas com os barrancos das vinhas desfeitos com as chuvas e as trovoadas.


Sentia a angústia, preocupação e completamente indefesa…

Queria vir-me embora. Ou então ir para Freixo. Lá sempre haveria 1 táxi, do Sr. Manuel. Era uma aldeia plana, mais alegre, mais airosa…

E eu sentia-me confusa…


Nisto, de cima do socalco, no terreno em frente, o meu pai chamava-me: “Rustininha, anda cá num instante e traz-me essa vara que está aí na sala junto ao alçapão e um saco. Há aqui ainda boa amêndoa…”

Aquele Rustininha!... Meu pai não era nada de diminutivos. E raramente me chamava assim. Mas esta era a sua forma afectuosa de trato para comigo.

Um pouco contrariada e aborrecida, lá fui buscar o que o meu pai me pedira.

Subi o barranco do solo granulado e, por entre torrões de terra, pedras, ervas secas e cardos (unhas de gato), jaziam muitas cascas frescas aveludadas e verdes. Meias escondidas, algumas amêndoas espreitavam.


Com a vara, o meu pai fazia descobrir aquelas que se escondiam por debaixo das pedras e das palhas.

Parava em cada amendoeira e ficava a olhar para os seus ramos…

Algumas ainda eram do ano passado… outras estava ali à espera de serem varejadas… No "rabusco" sempre se encontra muita amêndoa ainda.

“Vá, apanha esta!”…

O toque do pau era assertivo e seco. No tronco certo.

As amêndoas saltavam longe. Era preciso atenção aos gestos do meu pai. Eu fitava a amêndoa e acompanhava-a no seu percurso. Em pequenas corridas de passos ligeiros ia atrás dela.

Umas vezes caia em cima da terra revolta, outras no meio dos cardos e das pedras…Saltitava, e aninhava… saltitava e aninhava…repetidamente.

E enquanto eu saltitava, atrás das amêndoas e as metia dentro do saco ia retirando-lhes a “saia verde”, que algumas vezes já estava solta, outras estava presa e colada. Era uma pele grossa, dura, seca e verde aveludada.

Outras vezes havia, que no meio daquela azáfama, algo me chamava à atenção “Paizinho que é isto? Parece um sininho! Olha, e faz barulho!...”.

Meu pai ia explicando, as plantas silvestre que conhecia (rosmaninho, orégãos, zimbro, fiolho, alfazema, camomila, malvas, trovisco, carqueja, etc.) e a sua função para atrair os animais…


No meio daquela terra árida e aparentemente sem vida, existia um mundo fantástico de coisas variadas em miniatura: pedras brancas em forma de cristais… pedaços de micas laminadas que pareciam escamas prateadas… plantinhas com as mais diversas formas e tonalidades… formigas enormes e com asas… borboletas de todas as cores… pequenos répteis fugidios… libelinhas, louva-a-deus …. e dezenas, centenas de gafanhotos enormíssimos a saltitar na sua liberdade nos nossos pés (algumas maiores, saltavam à minha altura…) que mais pareciam fazer cópia dos meus movimentos.


A apanha da amêndoa, era de facto extraordinária, não só pela forma como ela é colhida mas pelo contacto que se tem de perto com o micro mundo da Natureza selvagem.


Descontraído, calmo, sereno… o meu pai assobiava com os lábios entre os dentes e cantarolava modinhas antigas da terra…. “O carrapito da Dona Aurora era postiço soubesse agora…”. “A mãe chamou pela Amélia, e a Amélia disse que já vinha. Oh Amélia, Oh Amélia! Senhora minha mãe já lá vou…”.

Eu ficava a olhar para ele… sentia-o feliz. Muito feliz!


De vez em quando parava.

Queixo em cima das mãos… uma em cima da outra… sobre a ponta do pau espetado na terra… ficava com os seus olhos muito azuis, muito grandes e brilhantes, a olhar fixo para o chão… Outras, com um olhar profundo e distante para lá longe dos montes….

Fazia os seus monólogos em voz baixa, monocórdica e arrastada: falava do seu pai, do seu avó, dos tios… Eram palavras soltas. Palavras desconectadas e sem sentido….

E eu sentia-me confusa…


Numa dessas suas paragens, vi-o fixo a olhar um ramo mais alto.

Olhei também a ver se via (ou se entendia) o que ele estava a ver…

Uma enorme amêndoa! Uma como eu nunca tinha visto: em forma de um grande coração com 3 cabeças….

Um pequeno toque muito firme e seco não chegou. Esta, só no 3º toque – forte e certo.

Ali mesmo à beira, ela cai pesada…”POC”

Àquela, ele fez questão de ser ele apanhar.

Em pé, junto a ele… os 2 a olhar a amêndoa. Pousou-a no meio da palma da sua mão (uma mão grande com unhas alongadas perfeitas… uma mão muito bonita e asseada…)

Ficou a olhar: primeiro, um ar sério. Depois um lindo sorriso! Uma boca grande e bonita. Uma covinha do lado esquerdo que se encolhia e sorria também…E olhos… os olhos grandes, muito azuis com muito brilho e cheios de água…

“Ai menina… eu não via uma amêndoa destas há muito muitos anos. Talvez há 50 anos…… e lembro-me do meu avô, teu bisavô paterno me explicar: estas amêndoas são raras. São amêndoas da Trovoada. A árvore que der desta amêndoa levou com um raio de trovoada em cima. Quem encontrar uma, fica protegido do perigo. Esta árvore deve ser muito antiga… Então!...já me lembro dela e era mais novo que tu!... já lá vão muitos anos!... Pega, guarda-a para ti. Ela irá proteger das trovoadas! Nada de mal acontecerá onde estiveres!...”

Apertei-a na mão e nunca mais a larguei.


De repente, o céu começou a ficar cinzento.

O vento era abafado e quente. Lá longe, para lá de Seixas, o céu era noite escura…

Como é que ele sabia que o “mau tempo” vinha ali?…

Eu sentia-me confusa….


A determinada altura, ouço-o em tom de voz mais elevada: “Vamos menina, não tarda que ela esgace aí com toda a força… vamos para casa… vamos tomar o pequeno-almoço… Corre!”


Entramos na sala e sentamo-nos.

A mãe suspirava. Calada.

O pai com um ar calmo, tranquilo e maroto!

Para mim era confuso: a mãe triste e o pai alegre…


O pequeno-almoço era a refeição que melhor me sabia.

O pai pegou no pão da Horta (tinha chegado no dia anterior na camioneta, que apitava pela estrada até ao Terreiro…)

O pão ocupava o braço inteiro. Uma ponta na mão, a outra junto ao peito. A navalha que trazia no bolso era afiada… e rasgou uma fatia perfeita…

A cevada ainda estava quente, mas já não fumegava.

A mãe andava dentro e fora… o barulho das fitas na sua passagem era repetitivo…como se andasse à procura de “não sei bem o quê”.

“Fernanda, senta aqui mulher… nada vai acontecer. Nunca aconteceu e meus pais sempre aqui viveram… e na altura o povo era só à beira da Cardeira e no Castelo praticamente… Tens cada uma mulher! Olha só o que encontramos. A miúda que te mostre…”

Naquele preciso momento, a lâmpada da sala piscou 2 vezes consecutivas… depois mais outras 3 com intervalos incertos… A mãe ficou muito séria a olhar para a lâmpada e colocou a mão no peito “Ai Jesus!”

O pai ficou imóvel com um pedaço de queijo na mão e que ia meter à boca…


Sem saber o que ia acontecer, apertei forte a mão que tinha a amêndoa…. E nesse instante…. Ouve-se um estouro que ecoou durante alguns segundos duma forma continua e explosiva.

A lâmpada apagou-se. E ficou um silêncio absoluto na sala com os ecos do silêncio apavorantes ainda a repercutirem no temor que causou .

“Mesmo aqui em cima de nós” Diz o pai.


A mãe fechou a porta da sala e colocou a tranca. Com ar de pânico disse “Cristininha e Nelinho, vamos para cima da cama…”

Fomos os 3 para cima da minha cama. Enquanto o meu pai estava junto da janela a olhar os relâmpagos.


Santa Bárbara bendita, que no céu está escrita. Com papel e água benta nos livre desta tormenta“. Foi das poucas vezes que vi a minha mãe a rezar.

A trovoada esteve ainda para cima de uma hora a rebentar tempos sem fim… enquanto a minha mãe nos contava, que quando tinha a nossa idade, estava uma vez em Moncorvo, em casa da prima Alice, e o que lhes valeu, foi irem para cima da cama… porque os cobertores da serra não são condutores da energia das trovoadas.

O meu irmão dava risadinhas e sussurrava-me “É Jesus a ralhar-te!”…


Sentia-me protegida pelo meu amuleto, mas ao mesmo tempo confusa.

Porque de facto, há coisas que são preciso muitos anos para as entender…


A festa durou algum tempo. O tempo suficiente para rebentar em todos os montes. Medonho e soberbo sentir o poder da natureza na sua forma mais bruta e assistir aos mais belos feches de luz e cor no céu mesmo em cima dos montes. Um autêntico fogo de artifício da Natureza.

Sentia-me pávida e atenta ao barulho da trovoada e às histórias da minha mãe… Meu olhar era parado na janela que se avistava os montes do volfrâmio de freixo de Numão, à espera do próximo relâmpago e dos estrondos que se repercutiam. E mesmo assim assustava-me quando vinha mais um…

Fortes clarões no céu a cair nos montes… Via nitidamente os raios… enormes! Em forma de “Z” e de “Y”… eram seguidos…

O céu era coberto de nuvens escuras, pretas. Estava escuro, de noite. Os relâmpagos iluminavam num forte clarão amarelo… era uma cena surreal. Um cenário sombrio que se iluminava com luzes de ribalta de todas as direcções…

Raios, faíscas fortes, clarões intensos, contraste de luminosidade … juntamente com estrondos infernais….

Sentia-se o cheiro e o sabor da humidade quente no ar. Eram fortes. Cada vez mais forte.

Primeiro umas pingas grossas. Caiam na terra seca e árida e formavam bolas de pó… A chuva começou a aumentar…. Caiam pingas fortes, mais e mais….

Os relâmpagos eram já mais espaçados. E aos poucos e poucos ouvia-se entoando-os mais longe, nos outros montes…

Juntamente com eles, as nuvens foram arrastadas…


O pai entrou no quarto e disse “Já passou. Lindo o espectáculo!”.

Eu e o meu irmão saltamos de cima da cama, e fomos a correr para o Caminho do Vale trigo.


“Vamos ver quem chega primeiro” dizia o meu irmão.

Corríamos então, para dizer “adeus” à trovoada e sentir a beleza daquela natureza, agora pintada com cores mais vivas.

Subimos à Corte Queimada porque era um ponto mais alto.

Uma enorme serenidade e acalmia!...

O ar era fresco e aromatizado com o cheiro de todas as ervas silvestres dali do monte…

O sol brilhava nas cores resplandecentes da natureza – os verdes mais verdes e os castanhos mais castanhos…

Eu continuava com a amêndoa na mão a olhar na plenitude e a sentir a natureza com todos os meus sentidos mais despertos. O meu irmão sentia-se eufórico e corria dum lado para o outro à procura dos pequenos rastejantes escondidos por baixo das pedras…


Era já meio dia. Dum dia de Setembro, ali nas Mós.

Aos pouco e poucos, começava-se então a ouvir o povoado. Como acontecia na magia de todas as manhãs.

E num instante, se sentia de novo o barulho da vida do povo na aldeia.


Mais lindo que qualquer amanhecer, mais bela que qualquer madrugada… Aquele momento tinha sido fantástico. Soberbamente fantástico!

E então, quando o mau tempo já ia longe, e o sol sorria no céu a zul… Um enorme arco-íris se pintava no firmamento. Grande. Tão grande que abarcava duma ponta à outra todas as montanhas em redor…

Ali aos pés de Santa Bárbara, numa plateia privilegiada, eu sentia-me a assistir ao mais belo espectáculo da Natureza.

Foram precisos todos estes anos, para entender algumas destas coisas simples. Como por exemplo: porque é que em cima da mesa do pequeno almoço havia sempre uma caixa de Lexotan; porque é que o meu pai adorava tanto aquela aldeia; porque é que o meu pai me chamou para ir apanhar a amêndoa com ele quando a minha mãe estava a falar comigo; e porque me contou a historia da amêndoa protectora da trovoada…

E só hoje compreendo também, porque é que o meu pai segurava as mãos em cima da vara e olhava para lá longe… porque é que o meu pai tinha os olhos com lágrimas ao lembrar-se do seu pai Manuel Quartas e do meu bisavô.

Hoje entendo o que eu sentia naquela altura e o porque me sentia confusa em tantos momentos.

Porque de facto, há coisas que são preciso muitos anos para as entender.

Maria Cristina Quartas