quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A caminho de Sta. Bárbara - 1ª Parte, por Maria Cristina Quartas

Quando as férias grandes estavam a chegar, em casa não se falava noutra coisa a não ser no mês e meio que íamos passar na aldeia.
Estar longe dos hábitos do dia-a-dia, estar em contacto com a natureza e rever os familiares mais próximos e velhos amigos, era pois, a maior alegria do meu pai. As férias eram assim, sempre motivo para bons encontros.

Embora a minha mãe não gostasse de estar isolada (“Em terras por onde nunca passou Cristo! E afastada de tudo e de todos!” - como ela dizia) e longe da nossa casa em Rio Tinto, também aproveitava estas viagens para ir visitar a sua irmã (a tia Maria) a Freixo de Numão. Terra onde a sua mãe (minha avó materna) nasceu.

Era muito forte o vínculo que o meu pai tinha com as suas reminiscências. Contava histórias antigas e dos seus tempos de menino-moço. Repetidamente o fazia, e sempre com o mesmo entusiasmo como se fosse a primeira vez.

Tinha um sentido de laços familiares muito forte. Falava de primos afastados, muitos dos quais nem conhecia, mas o seu zelo e cuidado em querer saber deles, era tão grande quanto dos familiares mais próximos.
Na nossa casa em Rio Tinto, as portas estavam sempre abertas para receber de bom agrado os Quartas, Retos, Quadrados, Reis, Brilhantes, e outros parentes com apelidos bem originais!
Na aldeia os serões eram longos, a falar nos que já partiram, a recordar momentos antigos e a actualizar as novidades da família.

Dentro dele havia um tempo vivo guardado, que o acompanhou ao longo da sua vida.
Veio para o Porto muito novo, à procura de melhor sorte do que a vida no campo - aos 17 anos de idade. E por cá ficou. Mas nunca perdeu as afeições das suas raízes. De tal forma que, apesar de ter saído tão novo da sua aldeia, conservava ainda a pronuncia da sua terra Natal, bem como pequenos hábitos provincianos.

Os meses de Agosto e Setembro eram os melhores. Os primos regressavam ao Douro, nessa altura, vindos de Lisboa e de França.
Agosto era o mês dos reencontros, das férias, dos casamentos. Setembro era o mês da apanha da amêndoa e das vindimas. Mês das festas/romarias (festas nas 7 serras). O 3º Domingo de Setembro era o eleito - dia da N. Sra. da Soledade nas Mós.

Sempre que podia ía “à terra” ver os pais e o irmão (tio Ivo). Quando isso não era possível, as cartas mantinham a boa tradição do contacto (“Querido irmão, espero que ao receberes esta, te encontres de perfeita saúde que eu, graças a Deus, estou bem…” - Era este o refrão do início das linhas que os unia).

Tinha eu 4 anos de idade, quando o meu avô (Manuel Quartas) faleceu (em 1970). Uma figura meiga e educada. Um bom homem! - Alto, magro, de bigode e sempre de chapéu.
Do que a minha memória se lembra (talvez das minhas lembranças mais remotas), tinha eu 2 ou 3 anos de idade (se muito)… estava sentada no colo do meu avô a olhar para o candeeiro em cima da mesa a observar a chama e a sentir o cheiro forte a petróleo. O meu avô estava a fazer o “pico pico sara bico” nas palmas da minhas mãos e afagava-mas com os seus dedos longos, duros e quentes. Conservo essa imagem com muita doçura e ternura.

Após a morte do meu avô Manuel Quartas, a minha avó foi viver para junto do tio Elísio Diogo (conhecido por Elísio Reto, seu tio– meu tio avô), no lugar do Castelo, junto ao cemitério da aldeia.

Passado um ano da morte do meu avô, o meu tio Ivo fez uma casa. Situada num ponto alto da aldeia. Foi das primeiras casas revestidas em cimento e pintada de branco e amarelo. Era um apogeu!
Da estrada, a sua casa era um belo Miradouro, coberto por uma ramada de uvas brancas e tintas.
A Avó, por fim, quis ir viver para junto do seu filho. E ali ficou, até aos últimos dias da sua vida.

Até 1977, ano que morreu a minha avó Augusta, as nossas férias eram repartidas entre as Mós e Freixo de Numão, em casa da tia Maria e do Tio Antoninho (conhecido com a alcunha de António Belsas).

As partilhas foram feitas. O pai ficou com a casa dos avós e com o prédio do “Bacelo”. Era um terreno longe da aldeia, lá numa encosta dum monte (situado no 3º morro antes de lá chegar). Tinha 11 oliveiras e 62 amendoeiras.

Agora tínhamos casa para passar as férias na aldeia. Era uma boa casa construída toda em pedra atravessada (tinham 60 cm de largura. Tinha cave com lagar e estábulo do cavalo, um palheiro e um pedaço de terra).
A casa ficava bem localizada. Foi construída num ponto muito alto, já fora da aldeia. Avistava todo o povoado, a estrada principal e as serras de Seixas, Freixo de Numão e Vila Nova de Foz Côa.
Situada no caminho para a Sta. Bárbara (a serra mais alta de onde se avistava as 7 serras). Era o Caminho do Vale Trigo.

O pai mandou arranjar a casa ao tio Ivo: caiou-a, arranjou o telhado, colocou janelas novas, forrou tectos, cimentou o pátio de entrada e o palheiro. Comprou camas de ferro, mesinha de cabeceira, 1 louceiro, 1 cómoda, 1 arca, 1 masseira, lavatórios de ferro com bacia e jarro, louças, cobertores da serra, etc.
Fez questão de conservar o rústico e o tradicional, mesmo com os móveis e os pequenos utensílios.
A casa tinha boas condições. E só em 1980 é que foi colocada a luz na aldeia. Não havia canalização. A bica do Terreiro era a fonte que servia toda a aldeia.

O Tio Elísio Reto combinou com o pai levar no seu burrinho 4 cântaros por semana, a troco de 20 escudos.
A água por vezes era pouca. E tínhamos de a economizar o mais possível. Uma bacia com 2 púcaros de água era o suficiente para tomar banho. Um pano bem espremido era passado em todo o corpo. A cara era a primeira a ser lavada. Depois o resto do corpo, segundo uma ordem.
A água que ficava na bacia, servia muitas das vezes para lavar pequenas peças de roupa e só depois era colocada num balde que tinha ainda outros fins variados.

Julho de 1977. As férias grandes estavam à porta. O entusiasmo não era o mesmo do que nos anos anteriores. A avó Augusta tinha morrido e o meu pai estava muito doente – tinha sido detectada uma cirrose hepática e os médicos davam-lhe apenas alguns anos de vida.
Contudo, as férias foram planeadas de igual forma.

(Continua)

Maria Cristina Quartas
Fevereiro 2010