quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

"Bruma suave", por de Maria Cristina Quartas


Foto de Prof. Mário Anacleto


http://www.youtube.com/watch?v=w8LL1x6J2rU&feature=related


Mar ameno te aconchega,

na doçura das marés mansas

que flutuam no mar calmo e sereno,

em vagas embaladas pelas ondas brandas.


Espuma branca te envolve

no mais doce bailado de prazer.

Ondeias no suave balanço

na liberdade que almejavas ter.


Nas asas dum belo sonho navegas

como ave em liberdade a voar.

Ao encontro da eternidade viver,

ao encontro de perpetuidade amar.


Bruma suave te leva

neste horizonte eterno sem fim.

Serás a minha inspiração do sol, da serra, do mar…

Serás Musa, Ninfa para mim.


E que se erguem as mais fortes torrentes,

e que se elevem as mais altas montanhas…

Serás imortalizado na Natureza,

Serás lembrado em tudo o que é Harmonia e Beleza.


Os teus poemas, a tua voz e a tua sabedoria

são os sons tocados na mais bela sinfonia!...

E nesse mar que navegas num sonho profundo

Serás sempre lembrado com Amor fecundo!


Maria Cristina Quartas

13 de Dezembro de 2010




quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

"Terceiro Domingo de Setembro - Festa da Nossa Senhora da Soledade", por Maria Cristina Quartas

Festa da Nossa Senhora da Soledade

-Padroeira das Mós-

Verão de 1972.

As férias estavam a acabar e dentro de poucos dias as aulas começavam. Nada demoveria a vontade de meu pai: passar o dia da Festa das Mós. Era o colmatar dum período de plena felicidade para ele. E, assim, tudo acabaria em festa!

As férias na aldeia eram obrigatórias, tal como era obrigatório visitar os familiares mais velhos ainda vivos, saborear o pão, a água, os figos, as laranjas, as uvas… e tantas outras coisas que aquela terra nos oferecia e, particularmente a ele, a quem dava o verdadeiro sentido da vida e a alegria de ainda as poder saborear. Embora sempre pensasse que aquele seria o último ano que ali iria, provavelmente.

Lembro-me que regressávamos sempre naquela segunda feira: a segunda-feira do terceiro Domingo de Setembro.

Agosto tinha sido um bom mês de férias e de descanso, um mês rico em “matar as saudades” e avivar as recordações dos tempos passados, de histórias que trespassavam dos mais antigos e das memórias dos anos de crianças, dos pais, dos avós e bisavós.
E também era o mês dos “primos”. Vinham de todos os lados do mundo e traziam consigo novas gerações.
Os primos eram sempre muitos contudo, em Agosto ainda eram mais.
Os tios… esses estavam sempre iguais e contavam sempre as mesmas histórias nos afectos que transmitiam.

Agosto chegava ao fim. A aldeia estava cheia de forasteiros e emigrantes: uns de França, outros da Suíça, outros da Alemanha, outros da Capital ou do Porto…

Uns vinham à Festa da terra das suas mulheres, outros dos seus pais, outros vinham para a sua Festa na terra Natal. Era uma Festa muito especial: Festa da Nossa Senhora da Soledade.

Era a Festa mais importante de todas. A Festa em que a presença de cada um era fundamental. Por isso, no Terceiro Domingo de Setembro, todos os Mosenses tinham que estar nas Mós.

Finais de Agosto, início de Setembro: os cântaros já começavam a andar em agitação.
As pedras das ruas eram asseadas, as casas lavadas e varridas com vassouras feitas de giestas.
Os atoalhados eram retirados das velhas malas de madeira e arejados do cheiro da naftalina.

As portas abriam-se para que quem passasse na rua pudesse ver o brio do seu interior.
“Bom dia, Maria. Hoje madrugaste!”
“Ah, atão! Vem aí a minha Alice e traz a sua pimpona, mais o mais velho. Vêm cá almoçar. Vou à horta buscar umas couvinhas e feijão, que eles gostam da sopa de cá! A minha Alice diz que anda ougadinha por uma moira preta. Coitadinha! Na cidade não as há!”

Havia um movimento diferente em toda a aldeia. E os ânimos eram outros.
As mulheres juntavam-se na fonte enquanto os cântaros enchiam e contavam dos seus afazeres. Contavam quem vinha e por quem esperavam. A aldeia era uma só família e quem viesse fazia parte dela também.

Nessa altura, os fornos enchiam-se de lenha. Era cozido o pão e confeccionados os doces tradicionais: económicos, bolas de azeite, doces de amêndoa, arroz doce, suplicas…

Exceptuando o queijo de ovelha e de cabra, que era feito no seu tempo certo para ser saboreado nessa altura.
Tudo era preparado e confeccionado a preceito e a tempo.

Os pastores (Tiaiata, Elísio Recto, António Brilhante, Zé Bichança…) matavam alguns dos seus gados, que criavam com doçura naqueles montes e vales, com intento para a festa. O borrego ou cabrito era o prato da festa!

A carne era preparada com todos os temperos. E os doces eram cuidadosamente guardados com um paninho branco de linho. E os ensaios eram muitos para que tudo saísse a preceito no dia e na hora certa.

As raparigas juntavam-se na garagem da casa do Senhor Padre Celestino e faziam as fitas com metros de comprimento, de papel colorido, recortadas, que iriam enfeitar a ruas e o largo do terreiro.
Enquanto recortavam flores cantavam e contavam as histórias dos seus amores.

Neste reboliço de preparação da Festa, até as Santas e os Santos eram preparados.
Umas semanas antes, várias pessoas responsabilizavam-se por um determinado Santo. Conforme haviam combinado anteriormente, cada um levava o seu, da Igreja para sua casa. Existiam dois Santos que não estavam no mesmo local: Santo António que estava na capelinha ao pé da escola primária e Santa Bárbara na capelinha em cima do monte.

Os Santos eram cuidadosamente adornados. Vestidos com finas roupas asseadas. E os andores eram preparados a preceito, dignos de transportar as imagens sagradas.

Naquela altura todos os Santos tinham o mesmo valor. Por isso, o esmero era imenso para que cada um fosse o mais bonito de todos.
Contudo, no meio de todos, a padroeira da aldeia era sempre o centro das mais elevadas atenções. Nossa Senhora da Soledade, coberta de um lindo véu branco, em cima da barquinha.

Conta então a velha história que ela era a protectora dos homens que iam pelo rio Douro na altura da guerra.

Sábado:
Por volta das 10h.
Nossa Senhora da Soledade saía então da Igreja em cima dum andor, acompanhada duma cruz e duas lanternas. Fazia visita por todas as ruas e ruelas da aldeia. A seu lado, as mordomas levavam um cesto, onde recolhiam as prendas. As prendas eram o que cada um queria dar: bolachas, doces, vinho, roupa, objectos de decoração, louças, etc…

Davam então a volta ao povo, recolhiam as prendas e, era igualmente tradição, as pessoas colocarem dinheiro na Nossa Senhora. As notas eram colocadas com um alfinete nas fitas que acompanhavam o seu lindo véu.

Simultaneamente, por onde passavam, os Santos iam saindo das suas casas de acolhimento.

Cada acolhedora levava a sua Santa em cima dum andor decorado, com quatro pessoas a ajudar. Tudo corria como estava combinado e planeado.

Depois da volta ao povo, eram recolhidos na Igreja, juntamente com os cestos com as prendas.

Entretanto, os cestos iam para o Bazar no Terreiro para leiloar. O dinheiro seria revertido para a Igreja.
Os andores ficavam até Domingo, à hora da missa solene na Igreja.

Da parte de tarde havia animação: ranchos, pauliteiros, aviões de Guerra, jogo de futebol (os mosenses contra os forasteiros), etc…
As “modinhas” eram sempre as mesmas, e muito bonitas:

“Minha Santa Mós
Minha terra bela
É com alegria
Que estamos nela…”

“O carrapito da dona Aurora
era postiço
soube-se agora…”

E então, nos intervalos, realizavam-se os leilões de modo a angariar as verbas para a ajuda da Festa.

À noite, a Festa era animada com um conjunto de música vindo de fora e com o fogo-de-artifício, que era à meia-noite.

Durante a actuação do conjunto, toda a gente dançava. Homens, mulheres, crianças, velhinhos… As mulheres dançavam umas com as outras, homens com os homens… a criançada fazia rodas e até algumas mulheres dançavam com o cântaro da água à cabeça.

Todos dançavam e qualquer um servia para seu par, desde que estivesse ali à mão. E não havia um “não”, ou “não quero” ou “não posso”! Nessa altura, não havia dores, nem maleitas.

Domingo:
De manhã fazia-se o preparativo para a missa. Estreava-se roupa nova e, ao pequeno-almoço, os tradicionais doces eram saboreados com o queijinho de ovelha.

Ao meio-dia havia a missa solene, a qual era cantada com a banda de música que, normalmente, era convidada de Freixo de Numão.
A missa tinha uma particularidade muito original: Havia o chamado “Sermão à Nossa Senhora”.
As pessoas com problemas faziam os seus pedidos ao padre ou escreviam num papel, fazendo também algumas promessas. No dia da missa, o Senhor Prior preparava um texto à Senhora da Soledade, onde a responsabilizava dos seus deveres e a lembrar-lhe da sua preciosa ajuda na resolução dos problemas de quem por ela tinha tanta fé!

Ao almoço, comia-se o borrego/cabrito estufado com batatas cozidas. E os músicos iam almoçar a casa dos mordomos, redistribuindo-se.

De tarde a festa continuava. Havia novamente a animação, os leilões e danças.
Às 5h da tarde fazia-se a volta à aldeia com todos os andores acoitados na Igreja. A procissão era acompanhada a passo lento, onde as pessoas levavam o seu rosário rezando, ou uma vela acesa pelo caminho.



Os Santos voltavam à Igreja e ficavam expostos até segunda-feira, altura em que seriam expostos novamente nos seus lugares, nos altares, depois da última procissão.







Segunda feira:
A festa continuava, com as tradicionais animações.

Já ao fim da tardinha, às 20h00 havia novamente uma procissão que demorava duas horas (até às 22h00) e dava então volta à aldeia toda. Era a despedida.
Os altares eram levados para a Igreja e os santos finalmente recolhidos aos seus altares.




Mas, havia um que ficava de fora: o Santo António. Isto porque ia para a sua capelinha (a capela Santo António). Este era então acompanhado pela banda de música e por todo o povo.

O Santo era exposto no seu altar e o povo regressava a dançar, à frente da banda, até ao Terreiro.

A alegria era muita e a sensação do dever cumprido com os Santos também.

“Vamos todos para o Terreiro
Estamos sem festa
E sem dinheiro”

“A laranjinha caiu caiu
A laranjeira no ar ficou
Ai a mocidade das Mós
Ai em toda a parte reinou”

As quadras repetiam-se, durante todo o caminho até ao Largo do Terreiro, enquanto batiam palmas e dançavam.

Por fim, já no Largo do Terreiro, o povo cercava a camioneta e não deixavam os músicos da banda irem embora, sem tocar mais uma: “Só mais uma, só mais uma!”

Depois, das 22h00 até às 2h00 da madrugada do dia seguinte, havia um conjunto de música a tocar enquanto a folia ainda reinava já no seu final.

Terça feira:
De manhã as mordomas desfaziam os andores e recolhiam-nos na garagem da casa do Sr. Padre Celestino.

Agora o reboliço acalmava. O povo sentia-se cansado e satisfeito de tanta festa e folgança.

Contudo, nesse dia também, os abraços já começavam a ser alguns, assim como as lágrimas de saudade.

Como tudo na vida, as coisas mudam. Muitos hábitos se vão perdendo, dando lugar a novos costumes.

Passados estes anos todos senti vontade de reviver os tempos antigos. E fui então de comboio à Festa das Mós.

O Largo do Terreiro estava no mesmo lugar. Mas as pessoas eram outras. As músicas também. O velho olmo (com mais de 500 anos) que cobria o largo e a festa, é agora uma jovem árvore de tronco fino.
Contudo, algumas coisas ainda se mantêm. Mas as sensações são diferentes.

No Domingo de manhã, um pouco antes da missa, fui dar um passeio até à estrada com o meu primo Alfredo. Vínhamos a recordar os nossos pais, os tios… comentávamos as mudanças que sentíamos comparativamente ao antigamente. E o desencanto e desinteresse que coisas de agora nos transmitem.
Perto do Atalho, Cecília Amélia Ferreira (87 anos) vinha em passo apressado. E Alfredo interpelou:
- “Oh Sra. Cecília, onde vai tão apressada?"
- “Vamos lá, que está na hora da missa. Isto hoje não há lugares!”
- “Está toda bonita! Toda pimpona!...”
Com um sorriso do tamanho do mundo e com um olhar de felicidade respondeu:
- “Pois atão!... hoje é dia de festa!”

Em silêncio continuei a caminhada em direcção à Igreja.
E durante a missa, observava os Santos expostos e reflectia: “Estes estão na mesma. Para estes nada mudou!”
Enquanto isso, vinha-me à ideia o rosto de felicidade da Sra. Cecília.
E fiquei a interrogar-me, como é que uma pessoa com tanta idade conseguia encarar as mudanças e continuar a manifestar tanto entusiasmo com uma festa que outrora fora tão diferente?!

Aquela linda velhinha tinha-me acabado de ensinar uma coisa muito importante da Vida: o verdadeiro sentido de festa é aquele que está dentro de nós!


Maria Cristina Quartas


Nota: Agradeço a gentileza do Paulo Almeida em me ter fornecido fotografias antigas suas que testemunham este texto.

domingo, 5 de dezembro de 2010

"No Cais", por Maria Cristina Quartas

Foto de Prof. Mário Anacleto

http://www.youtube.com/watch?v=hNMwGXamT5o&feature=related


Nem saudade te prende nem o longe… te dói

Apenas o silêncio existe nas horas demoradas

onde a melancolia e a nostalgia intensa corrói

neste lugar frio e triste, deste que partiste.


A brisa é fria no eco da solidão,

mórbido canto de melodia parada

que acompanha o tempo

na ilusão da tua chegada.


O cais… o cais é agora local de abandono,

uma Ilha perdida, de sonhos e quimeras

dum tempo em vão, sem dono.


Não existirá mais auroras, nem entardecer.

O sol deu lugar ao orvalho da neblina

e toda a hora é hora de anoitecer…


Olho o Céu e em cada noite escura

e peço à luz do luar

que te traga de volta na fragata.


Porque esta saudade me prende

e este longe… me mata!


Maria Cristina Quartas


quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

"Clarinda Polido", por Maria Cristina Quartas


Foto de MCQ


http://www.youtube.com/watch?v=o3upRNN_Bag&feature=related


Distante já se ouvia o buzinar, e as mulheres juntavam-se no Terreiro.

Lá longe, na estrada, avistava-se a camioneta, que se ia aproximando com o “apitar” em constante sinalização.

- “É o chicheiro?”

- “Não. É o Padeiro. Oh Alda, vem aí o Padeiro.”

- “Da Horta?”

- “Não. É o padeiro de Freixo de Numão”.

Clarinda andava de um lado para o outro e começava a ficar agitada com a movimentação.

Enquanto esticava as mangas e as prendia com as mãos, ou puxava para cima e cruzava os braços, falava sozinha.

A camioneta aproximava-se lentamente para dar tempo às pessoas para descerem as calçadas de terra batida e se juntarem no largo. Passava no lavadouro, na fonte e subia em direcção ao Largo do Terreiro sempre a “apitar”.

O povo ali estava em fila desordenada, mas todos sabiam a sua vez.

Uns pediam um pão de centeio, outros de quatro cantos, outros perguntavam se trazia bolas de azeite.

O pão era como uma broa grande. Convidativo a ser fatiado e a juntar-lhe um naco de queijo de cabra ou a acompanhar com um cacho de uvas doces daquele vale de Sta. Bárbara.

Clarinda aproximava-se da camioneta e, com o olhar vago, parecia querer ver o que ali se passava, fazer sentir a sua presença e sentir um pouco do calor das pessoas.

- “Então Clarinda, a Senhora quer comprar?”

Clarinda esticava as mangas e cruzava os braços: “Merda, merda. Se tivesse pão dava-te”.

O povo ria-se das suas palavras. Mas havia um ar de ternura nos sorrisos naqueles rostos gastos pelo tempo.

-“Oh Clarinda queres pão filha?”

Clarinda encolhia os ombros e respondia: “Gostas dela, gostas dela, gostas?”.

Clarinda fazia parte do Largo do Terreiro. E lembro-me de sempre a ver por lá, quando era pequenita e íamos lá passar as férias de Verão.

De trás para a frente, fazia os seus monólogos, com os braços cruzados e a mão esticada cravando dois dedos no rosto.

Quando passávamos no Terreiro ela aproximava-se de mim e da minha mãe. Parava à nossa frente e ficava a olhar-me. E minha mãe dizia:

- “Olha, esta menina ainda é tua prima. É a Clarinda.”

- “Clarinda, esta menina é minha filha. E é tua prima”

Clarinda sorria, e dizia:

- “Menina, gostas dela, gostas dela, gostas?”

A casa da Clarinda era o Largo do Terreiro e a sua família toda a aldeia.

Hoje tem 59 anos de idade. Fui visitá-la no dia 13 de Maio deste ano a casa de uma sua irmã na Laginha. Estava ela sentada ao lado da sua mãe (Sra. Homera), com 98 anos de idade, ambas muito asseadas a verem televisão.

Estava igual. O mesmo rosto, o mesmo jeito…

O tempo passa e tantas coisas mudam. Mas Clarinda não.

O que será das Mós sem a nossa Clarinda?!...

Uma figura típica, mas uma pessoa querida, estimada e respeitada por toda a aldeia e a quem a ela pertença.

Talvez seja esse carinho, esse afecto tão especial, que a torna sempre igual.

Clarinda tem as suas regras e normas sociais e morais. Não é tosca, não! Apenas não entende o sentido da vida como, afinal, acontece com cada um de nós.

As Mós tem mais valor por ter a Clarinda, isso é certo. Ela faz parte da aldeia e é sempre lembrada com muito carinho e respeito.

E acontece porque, no fundo de todos nós, existe uma Clarinda, onde os monólogos, a agitação, as palavras incompreendidas também existem.

Quantas e quantas vezes nos aproximamos de alguém à espera que nos acarinhem? Quantas e quantas vezes, os nossos desabafos não são palavras soltas, aparentemente sem sentido?

Quantas e quantas vezes, não colocamos a mão no rosto, puxamos as mangas, vagueamos dum lado para o outro em agitação, à procura duma resposta que nunca chega a vir?

Clarinda não sabe de política, nem de matemática, nem de geometria, nem de marketing ou de astrologia…. Mas sabe o sabor da imaculabilidade da vida.

Sabe o que é cheiro da terra, o sabor da água límpida e do ar puro da montanha. Percebe das azeitonas, das amêndoas, das uvas, das laranjas e de outros frutos acabados de colher. Conhece o nascer do sol junto de Santa Bárbara e o pôr-do-sol por trás das Seixas. Reconhece os ecos dos montes das mais belas sinfonias nos sons da natureza. Conhece a Via Láctea, a Estrela Polar, a Ursa Maior, a Ursa Menor e a Classiopeia… e já viu centenas de estrelas cadentes e reconhece todas as estrelas que cintilam e aquelas que não brilham.

Estou certa que Clarinda nunca sentiu falta de nada e nunca reclamou por não ter outras coisas, senão as que teve e tem na vida. Porque nunca lhe faltou o essencial: o carinho o afecto, respeito de todos e o aconchego consagrado da Mãe Natureza.

Muitos perguntarão: “Afinal, o que tem a Clarinda?”

Talvez a resposta esteja na maior questão e problema que ela colocava enquanto deambulava no Largo do Terreiro com a mão no rosto monologando: “Porque é que as outras pessoas são todas iguais e porque complicam tanto todas as coisas?”

Querida Clarinda quem me dera saber as coisas que tu sabes!

“Gostas dela, gostas dela, gostas?”... Obviamente que a resposta é: “Sim!”

Maria Cristina Quartas

01/Dez/2010


"Num 3º fim de semana de Setembro", por Maria Cristina Quartas


Foto de MCQ


http://www.youtube.com/watch?v=vQVeaIHWWck&feature=related


18 de Setembro 2010

Era sábado. Um sábado de um terceiro fim de semana de Setembro.

Naquele dia acordei cedo. Mais cedo do que habitualmente.

Tinha que organizar a minha vida durante a manhã, para estar disponível para o trabalho com o meu amigo M.. Trabalharmos no nosso livro “A Caminho de Santa Bárbara”.

Na hora marcada, M. chegou. O livro estava quase pronto, mas ainda faltavam alguns arranjos gráficos, escolha de fotografias, um ou dois textos meus e alguma poesia que ele gostaria de escrever, sobretudo acerca da viagem de comboio pelo Douro até Freixo de Numão.

Sentia-me feliz. Sentíamo-nos felizes, porque estávamos a fazer um trabalho em conjunto muito bonito. Partilhávamos a motivação que sentíamos e aqueles momentos de encontro eram, de facto, mágicos. O livro agora já tinha forma, conteúdo… estava praticamente pronto. Já se via em concreto o que tinha sido apenas um sonho, um projecto.

15h17. Fechei a porta da rua. E fui a correr à janela da sala dizer-lhe adeus, enquanto M. sorria acenando.

Sozinha com o meus pensamentos, reflectia o quão importante é termos um amigo com quem partilharmos o sentir da nossa alma, numa comunhão plena de sentimentos puros, sinceros… como se naquele momento as duas almas fossem uma só.

E enquanto olhava o céu e as serras de Valongo no horizonte, sentia-me feliz por me entender desta forma de sentir a amizade e ter o previlégio de ter assim um amigo.

Imbuída num espírito de serenidade, alegria e afectos veio-me ao pensamento, (ao olhar as serras de Valongo), as Mós. E associei o meu estado de espírito ao que sentia quando olhava aqueles montes, que como dizia o meu amigo “ancas de virgem/gigante deitado…” e me transmitiam belas sensações de leveza e de serenidade.

E foi nesse preciso momento que me lembrei que, naquele dia, as Mós estaria em festa (festas em Honra de Nossa Senhora da Soledade).

16h00. A vontade era imensa de sentir a Aldeia. Abraçar os primos, rever amigos.

Calcei umas sapatinhas. Meti duas ou três coisas num saco e saí pela porta fora em direcção à estação dos Comboios de Ermesinde.

17h15 no relógio da Estação. A locomotiva aproximava-se lentamente e era anunciado no altifalante: “Está a dar entrada na linha número três o comboio procedente de Porto-Campanhã com destinho ao Pocinho.”

O comboio parou na gare e subi a carruagem.

Entrei na penúltima carruagem que ia quase vazia.

Tudo aquilo era uma aventura para mim. Mas sentia-me confiante e empolgada, pois ia fazer a viagem de comboio, para sentir de perto o encanto daquela viagem e poder partilhar com o meu amigo tudo aquilo que ia ver e sentir.

Chegada ao Marco de Canaveses (18h21) o comboio parou. E foi aí que decidi pegar num bloco e numa caneta para começar a descrever esta minha aventura.

À minha frente, uma senhora de meia idade dormitava, enquanto deixava cair sobre o regaço o terço que trazia nas mãos e ia rezando com as mãos molengonas cada pedra do rosário.

Pela janela ali ao lado o rio Douro começava a aparecer.

A paisagem começa a ser agora o cenário do filme que eu ansiava ver.

Pedi licença e abri a janela.

O rio Douro cada vez estava mais perto e eu sentia-me a transportar para os encantos das águas serenas, que ora se mostravam verdes, ora azuis, ora cor de prata, ora cor de ouro… o rio mudava de forma, de cor, e em cada recanto via pormenores encantados que me faziam suspirar de plena felicidade.

M. ia comigo no pensamento. E cada foto que tirava era para lhe mostrar, para ele ver a magia que me criava todas as sensações exuberantes!

O terço estava a agora pousado sobre o regaço, e vi no rosto daquela mulher um lindo sorriso.

A conversa começou a fluir. E a viagem tornara-se agora mais agradável.

Marília sorria enquanto me olhava no meu entusiasmo das fotos que tirava, e nos murmúrios que fazia: “Que lindo!”, “Ai que que sonho!”, “Ai se o M. aqui estivesse!”…

Começamos a partilhar a beleza que ambas assistíamos enquanto comentávamos a beleza do Douro: “O Douro é mesmo lindo! Parece um espelho, tão límpido e tão brilhante!”

Assim eram os seus olhos: muito azuis e com um brilho de felicidade. O motivo do Douro fora apenas o início para uma longa conversa. Marília ia falando de si, das viagens que fazia tantas e tantas vezes sozinha.

O diálogo começava a ter conteúdo, como se aquele momento fosse o último dos nossos encontros, e facilmente nos sentímos próximas, como se fossemos amigas de longa data.

A viagem agora era a três. Pois, enquanto falava com Marília, observava o rio e ia telefonando ao M., partilhando a emoção que sentia naquilo que via.

Marília ia sair em breve. Pediu-me o contacto e, com os olhos brilhantes, disse-me que queria ser minha amiga.

O comboio parou na gare da Régua.(19h09)

Marília abraçou-me e, com os olhos cheios de lágrimas, disse-me que a coisa mais bela desta vida era ter amigos verdadeiros e conhecer pessoas especiais.

Desceu do comboio e ficou na plataforma da estação com a mão levantada acenando, enquanto dizia: “Até breve” e os seus olhos resplandeciam de emoção.

Aos poucos e poucos, a luz do dia ia fazendo sombras das montanhas. No rio desenhavam-se formas surreais dos reflexos das encostas, do céu e das sombras.

Tudo me parecia surreal mas dum encanto tal, que preenchia o silêncio que se fazia e preenchia a ausência daquela minha companhia.

As montanhas começavam agora a tomar apenas forma de relevo e desenhavam os seus contornos bem definidos no céu que, lentamente, se ia assombrando num azul turquesa, que se reflectia no rio… e que me tornava deslumbrada e confusa, pois não sabia se era o céu ou o rio que reflectia, ou se as montanhas eram as sombras no rio ou se os relevos que no céu se desenhavam.

Os relevos eram negros, o rio um azul turquesa brilhante e o céu da mesma cor do rio, crivadinho de estrelas, de todas as formas, tamanhos, a cintilar duma forma orquestral numa sinfonia encantada da Natureza.

Os cheiros eram intensos. O cheiro da terra misturava-se com o cheiro do rio. Num perfume que embalava as flores do monte, onde o cheiro do restolho era o sustento de toda aquela fragrância.

A serenidade, a paz, pulsava na sua forma mais pura e intensa do céu, do rio, das sombras, das montanhas.

No silêncio vibrava a mais bela sinfonia que embebecia todos os meus sentidos.

No meio do nada, naquele paraíso, uma pequenina estação surgiu – Vesuvio! (20h17)

Liguei ao M. novamente e descrevi o que sentia e o que via com todos os sentidos do corpo e da alma.

M. ouvia silenciosamente o que com ele partilhava. E, num tom de voz doce e emocionado, retorquiu: “Só quem ama a Natureza e a sabe escutar, a vê como a tu a descreves!”.

20h23. Desci o comboio – Freixo de Numão.

A Estação estava deserta. O comboio deu partida em direcção ao Pocinho e, do outro lado da linha, a minha prima Alice Diogo esperava-me com a sua filha Sãozinha (que já não a via há mais de 35 anos) e o marido Abreu.

Com o coração cheio de emoções e recordações antigas, seguimos em direcção às Mós, ao encontro da Festa da Nossa Senhora da Soledade.


Maria Cristina Quartas


Nota: "Rio de Ouro" foi o último poema do Prof. Dr. Mário Anacleto