domingo, 7 de março de 2010

“A Cruz do Amor: o Fado da Vida”, por Maria Cristina Quartas



Agosto, 1928.

10h25 no relógio de parede da Estação de Freixo de Numão.

A tela que percorrera ao longo daquela viagem transformava-se agora em palco real.

Um estrépito sibilo prolongado se fez. Os baloiços e os zumbidos monocórdicos da oscilação das carruagens desalinhadas descansam finalmente sobre os trilhos da linha do Douro.

Os cheiros a carvão eram então intensos e as rodas fumegavam do atrito nos carris com destino a Barca d'Alva.

As águas serenas do rio Douro transbordavam uma calma imensa nas margens do seu leito.

Uma ondulação apaziguava e embalava as encostas dos montes e cobria-as duma paz plena, ao longo daquele caminho.

O ar era quente e seco. Sentia-se o sossego que cobria os socalcos do Douro e sustentava as vinhas, das amendoeiras e das oliveiras transmontanas.

Era uma manhã solarenga de Verão.

Um cesto de verguinha e duas malas de pele desciam finalmente os degraus da primeira carruagem daquela locomotiva extenuante.

Manuel Ribeiro, homem alto de porte senhorial. Fato cinzento. Camisa branca e um colete com uma corrente prateada de relógio de bolso a cair. Chapéu alto com fita de seda preta. Sapatos pretos brilhantes. E uma bengala que o acompanhava no seu porte.

Fernandinha continuava debruçada na janela daquele compartimento de bancos longos de madeira. Uma linda menina de cabelos entrançados e de vestido cetim violeta, com soquetes brancos e chapéu da mesma cor. Segurava uma boneca de trapos feita com restos do seu vestidinho acetinado… Seus olhitos eram traquinas, acinzentados e ávidos de curiosidade.

No compartimento ao lado Manuel Fernando espreitava as outras crianças que brincavam nas águas do Douro junto a um barquinho que planava na sua ondulação suave.

“Fernandinha! Manuel!” Maria Antónia chamava os gémeos enquanto se abanava com o seu leque e compunha o seu cabelo ondulado.

As crianças sentiam-se felizes com a liberdade que sentiriam ao desfrutar daquelas férias.

Maria Antónia pegou na sua filha pelos braços e entregou-a a Manuel Ribeiro, que a pousou cuidadosamente no chão junto às suas malas.

Depois, desceu os 3 degraus escaldantes com o outro gémeo ao colo que cantarolava enquanto dizia adeus ao rio.

Estavam agora os 4, sobre o solo imóvel prestes a ser percorrido pelos montes fora em direcção às minas do Volfrâmio.

Do outro lado da linha, Manuel Brilhante acena com um sorriso de felicidade “prima Antoninha! Primos!...”

Manuel Brilhante era primo de Maria Antónia. Homem do povo, que nunca vira o mar e apenas sabia da terra árida e dos olivais.

Após longos abraços, pegou nas malas em direcção ao seu cavalo “Hei aí! Ah catano!”

Colocou as malas sobre a albarda e atou-as com uma corda grossa e comprida.

Antoninha continuava com o seu leque a abanar e segurava na sua sombrinha de renda. O calor era muito e tinham que percorrer muitas léguas pelas encostas daqueles montes.

Juntamente com a bagagem cheia, Antoninha sentou-se de lado em cima do cavado. Fernandinha e Manuel sentaram-se encavalitados nas malas que equilibravam a albarda.

Num andar compassado, em frente ao animal, seguiam os dois primos que conversavam sobre o tempo e sobre a vida da cidade.

Manuel Ribeiro da Silva era um homem muito conservador. Homem culto e com formação de elevada moral e costumes. Manuel Brilhante ouvia-o atentamente e, de quando em vez, interrompia-o para lhe mostrar alguma novidade naqueles montes ou para lhe falar do tempo.

Pela colina acima, em caminho de cabras, percorriam o terreno irregular em direcção a Sta. Bárbara. O rio Douro ia ficando cada vez mais alongado e estreito.

Já lá em cima, a meio caminho da capelinha de Sta. Bárbara, atravessavam o monte e logo avistavam o povoado das Mós e, nos seus olhares longínquos, lá ao longe em cima duma montanha seca - as Minas do Volfrâmio.

“Ah!.... já se vê Freixo! Mais 2 horinhas e já lá estamos” Dizia Manuel Brilhante, enquanto passava o seu boné dobrado no suor que lhe escorria pelo rosto abaixo.

Manuel e Fernandinha dormitavam cansados, encostados à mãe, enquanto ela os ensombrava com a sua sombrinha de renda fina.

Agora desciam em direcção ao Vale Trigo (havia uma fonte muito antiga da qual jorrava uma água muito boa. E diziam “aquela água valia trigo”. Daí adveio o nome “Vale Trigo”).

Desciam pelo caminho do vale Trigo em direcção ao Castelo.

Gingavam por entre oliveiras e amendoeiras, na terra seca e árida, envolta de pedras e cardos…

Já tinham descido o monte e estavam a atravessar o lugar do Castelo…

“Paizinho tenho sede!” A pequena Fernandinha tinha acordado com o calor que fazia.

Manuel Ribeiro, limpava o suor que lhe escorria do rosto…

“Paizinho tenho sede!”

“Espera um pouco filha… ali mais à frente há um ribeirinho. Estamos quase…”

“Paizinho tenho sede….”

Passavam à encruzilhada do Castelo. Um jovem petiz de boné, camisa branca e calças arregaçadas, que estava debaixo duma oliveira a descansar do sol alto, aproximou-se a correr com uma bilha de barro “Tome senhor, para a menina”.

Manuel Ribeiro pegou na bilha e deu à sua filha.

O jovem tinha uns olhos azuis muito lindos e um sorriso malandro. No rosto, no lado esquerdo, uma linda covinha que sorria também.

“Senhor, como se chama a menina? Sois da cidade? Viestes de comboio?”

Manuel Ribeiro afagou a cabeça do rapazinho e perguntou-lhe o nome “Adérito, Senhor. Adérito Quartas”.

“Lindo nome tens. Muito obrigada pela água.” – Manuel Ribeiro agradeceu.

Enquanto o cavalo se afastava, Fernandinha ficava a olhar para trás, para os olhos azuis que a saciaram. No meio do caminho, Adérito dizia adeus com o braço direito levantado, meio a medo, enquanto o esquerdo segurava a bilha de água fresca.

A viagem fez-se.

As férias fizeram-se.

Foram umas férias fartas. Fartas de convívio com os familiares de Manuel Ribeiro da Silva e com primos afastados de Antoninha.

No final de Setembro, regressaram ao Porto.

Manuel Ribeiro da Silva tinha mais 2 filhas dum primeiro casamento – a Maria e a Aurora.

A Antoninha tinha um filho de pai “incógnito” – Abílio dos Santos.

Era um casal feliz. Uma casa cheia!...

O tempo passou-se e as meninas fizeram-se mulheres.

Maria era uma moça trabalhadora. Desembaraçada.

Aurora era mais pacata e tímida.

Numa das férias em Freixo de Numão, o primo Antoninho (António Belsas) apaixonou-se pela Maria. Homem bom, viúvo. Precisava duma mulher para o tratar e cuidar dos seus filhos ainda pequenos.

Manuel Ribeiro da Silva confiou a mão da sua filha ao primo, que lhe pedira então autorização para namorar a sua filha mais velha.

Passaram-se anos. Os gémeos eram agora jovens adolescentes.

Manuel Ribeiro da Silva educou seus filhos com muito rigor e disciplina. E não abdicava dos seus princípios católicos e cristãos.

Maria seria mulher para casar. Aurora para cuidar deles quando fossem velhos. Abílio era um pouco bastardo! Pois a sua rebeldia, por não saber quem era o seu pai, fazia dele um rapaz muito traquina e desobediente.

Os gémeos estavam também na idade de fazerem alguma coisa na vida. Fernandinha iria para a fábrica dos cigarros (Tabaqueria de Portugal) e Manuel Fernando continuaria a estudar enquanto a resposta aos seus estudos fosse positiva.

Moravam em Rio Tinto. E Fernandinha ia para o Campo 24 de Agosto a pé.

Dentro da cidade, calçava as socas que lhe cobriam os pés de jovem bonita e airosa. Mas fora da cidade, por vezes, pisava o chão com os pés descobertos para sentir o gozo do contacto com a natureza…

Pelo caminho ate à fábrica, Fernandinha passava pelo Liceu principal da cidade: Alexandre Herculano.

Os jovens estudantes juntavam-se aos grupos e vinham ao Campo 24 de Agosto, espreitar as jovens operárias que ali labutavam.

Viriato era um rapaz alto, moreno… filho de gente fina da cidade, habitava numa moradia no Bonfim. Eram 2 irmãos. Um deles era médico e Viriato seguiria pelo mesmo caminho. Apaixonou-se por Maria Fernanda e logo começaram a namorar.

Viriato vivia apaixonado por Maria Fernanda. Esperava por ela à saída da Fábrica e levava-a junto ao lago, no alpendre, no Jardim do Campo 24 de Agosto. Ficava a contemplar a sua beleza e a beijar-lhe as mãos macias e perfumadas.

Maria Fernanda amava o jovem também.

Ansiosa por conhecer o mundo do amor, confessava-lhe segredos do seu mundo de adolescente e de jovem ávida de amar.

Viriato amava-a com toda a delicadeza e queria fazer dela a rainha do seu amor. Por isso, prometia à jovem que só a beijaria na boca quando se casassem.

As diferenças de classe social eram grandes. As amigas na fábrica alertavam Fernandinha para um possível desgosto de amor quando, um dia, a família de Viriato soubesse daquele namoro.

Fernandinha vivia aquele amor, com todo o fogo e paixão dos seus 18 anos de vida e um mundo maravilhoso por descobrir de fantasias e ilusões.

Verão, 1942.
1h30 no relógio da estação de freixo de Numão.
O comboio era chegado. Como há 5, 10 anos atrás.

Os gémeos eram agora adultos. Lindos jovens e namoradeiros.

Maria tinha sido noivada. E chegava o momento do seu casamento.

A família estava toda naquele momento.

O primo Manuel Brilhante lá estava, com o mesmo cavalo e mais cordas para atar as malas, que agora eram muitas.

Passaram o caminho de Sta. Barbara, do Vale Trigo, do Castelo. Passaram as Minas do Volfrâmio e chegaram a Freixo de Numão.

A festa foi grande. Foi um casamento por conveniência (todos o sabiam) mas foi uma boa opção para Maria e Antoninho.

Ao casamento foi quase toda a aldeia. E estiveram presentes os feitores para quem o Antoninho trabalhava. – o Sr. Taborda e o Sr. Andrade.

Naquela altura, estava em casa dessa família abastada, um jovem que vivia em sua casa no Porto. Um jovem, duma aldeia vizinha e de quem eram padrinhos. Um jovem das Mós.

Durante a festa, o jovem da cidade aproximou-se de Maria Fernanda e perguntou-lhe se ela se chamava Maria Fernanda. Admirada, a jovem respondeu que sim e perguntou-lhe como é que ele sabia o seu nome.

Ele respondeu-lhe que era o rapazinho que lhe dera de beber num dia que ela trazia um lindo vestido violeta.

Fernandinha corou e foi nesse momento que, olhando-o nos olhos, reconheceu o azul que lhe saciou a sede.

Adérito era um homem bonito. Alto, moreno e muito sedutor.

A partir desse momento, Adérito não parou de galantear a jovem menina-moça ávida por descobrir os prazeres do amor.

Adérito era um jovem elegante e vaidoso. Não foi difícil conquistar o coração de Fernandinha e da sua família. (Ser “das terras da família” era uma mais valia para o jovem conquistador.)

Fernandinha, apesar de ser uma mulher carinhosa e meiga, era muito malandra. Nas pausas do seu trabalho, divertia-se a contar às amigas as suas aventuras com os seus “dois amores”.

De tal maneira o era, que apresentou Adérito a Viriato como primo.

Viriato não via mal um primo ir buscar a prima ao trabalho. Pois certamente que faria isso pelo zelo e cuidado que tinha com a linda donzela.

De forma que, à saída da fábrica, lá estavam os dois “amores de Fernandinha” à sua espera.

Durante algum tempo, Fernandinha teve comédia para contar às suas amigas. Só que, inevitavelmente, aquela situação tornara-se insustentável, pois Adérito queria um namoro declarado.

As opções são sempre difíceis de fazer. Mas, encontrar uma razão para tal, torna-se ainda mais complicado.

Para resolver tal problema, Fernandinha pediu a Viriato para ele lhe apresentar o seu irmão. Médico e muito conceituado na cidade.

Como de costume, Viriato foi buscá-la à fábrica e, nessa altura, levaram o caminho do Bonfim.

Ao chegar a casa do jovem, Fernandinha tirou os socos ficando com os pés no chão. E caminhou um pouco descalça. Apresentou-se assim ao senhor Doutor.

No dia seguinte perguntou ao Viriato o que é que seu irmão havia dito.

Com a honestidade que lhe era peculiar, disse que o seu irmão comentara que, para arranjar uma mulher assim, não precisava ir tão longe.

Aproveitando esse motivo (na resposta já esperada), alegou que o seu namoro teria que acabar, pois não queria ser causadora de desconforto na sua família pela sua humilde simplicidade.

Viriato não aceitou a idéia e tudo fez para despoletar o amor da jovem.

Fernandinha amava Viriato, mas sentia que os beijos nas suas mãos eram pouco para o fulgor que sentia.

Adérito conquistou o terreno e, em pouco tempo, o namoro já era firme e passava a noivado.

Viriato não aceitou. Sabia o quanto a amava e sabia também que Fernandinha tinha-o como o seu primeiro amor.

Viriato adoeceu. Doente de paixão e de desilusão, preferia morrer do que ser rejeitado pela mulher que amava e que acreditava que o amava também.

Por outro lado, o jovem casal sentia-se então empolgado pelo seu namoro e pela segurança que sentiam naquela relação. Passavam na porta de Viriato, no regresso a sua casa. E Viriato estava na janela, segurado pela sua governanta e ama, para ver Fernandinha passar.

Meses passaram-se. Viriato deixou de estar à janela àquela hora.

Manuel Ribeiro, vendo o entusiasmo da sua filha, decidiu marcar o casamento com alguma brevidade.

Chegou o grande dia. A euforia era muita. Estava tudo pronto para se encaminharem para a Igreja.

Antoninha sentia-se feliz ao ver sua filha noivada, mas não sentia a certeza daquela relação.

Ocultava da sua filha algo que poderia ser marcante para o resto da sua vida. E resolvera privar com ela antes de saírem para Igreja.

Antoninha, com os olhos banhados de angústia e lágrimas, deposita nas mãos da jovem, uma carta.

Tinha selo de Paris e datada de umas semanas antes.

Abriu a carta. E uma pequena cruz em marfim e prata caiu-lhe no regaço - era do Viriato.

Viriato estava em França. Tinha ido estudar para lá, para casa duns primos, para esquecer Fernandinha.

Sabia que ia casar e enviou-lhe a cruz, dizendo que o Amor seria a cruz da sua vida. Talvez um dia, tarde demais, ela entendesse a importância dos puros sentimentos que os uniam. E que ela seria a mulher da sua vida. Nenhuma outra ocuparia o seu lugar.

A carta perturbou Maria Fernanda, mas… Tinha o seu noivo à sua espera. E não poderia desobedecer à vontade de seu pai.

Maria Antónia chorou abraçada à sua filha. E aconselhou-a a pensar no que ia fazer da sua vida. Ainda iria a tempo.

Mas, para Maria Fernanda, seria impossível voltar a trás. Mesmo sabendo que aquele amor era grande e verdadeiro.

E assim foi.

Em pouco tempo, Maria Fernanda passaria de menina e moça, para uma mulher fértil e com obrigações domésticas.

Logo após o casamento, teve uma filha. Logo a seguir um rapaz. Depois outra filha… e 7 vezes deu à luz.

A vida foi-lhe difícil e árdua.

O seu romantismo e idealismo nunca foram realizados. Junto com a desilusão, a cruz do arrependimento sempre a perseguiu.

Passava horas a ler em segredo a carta (as últimas palavras de Viriato).

Encontrava reconforto na cruz que beijava e pedia perdão por não ter sido sensata no amor que era verdadeiro e leal.

Fernanda passava muitas horas sozinha com os filhos. O marido era viajante e a sua ausência provocava-lhe sentimentos de profunda solidão. Coisa que nunca soube colmatar.

Adérito era bom homem, amigo da família. Mas passava muito tempo ausente.

A vida não era fácil, por isso, Fernandinha aprendeu a arte de costura.

Trabalhava noite e dia. Fazia vestidos de noiva e caplines.

Tinha 2 filhos mais pequenos, pois fora mãe já na casa dos 40. E, enquanto trabalhava, punha-os perto de si, numa manta no chão. Os restos dos panos eram as roupas das bonecas…

Enquanto costurava, cantava a chorar. Era como se falasse com o fado. E encontrava algum conforto na sua dor, nas letras das canções que cantava. Elas alimentavam o seu romantismo saudoso. (“Rosa enjeitada”, “A Severa”, “Oh linda costureirinha”, “Na minha aldeia todos são primos e primas”…)

Adérito era um homem forte, saudável. Uma alma generosa e amiga.

Fernanda foi o primeiro e único amor na vida de Adérito. Amava-a, era generoso e amigo da esposa e dos filhos. Mas Fernanda sentia-se sempre insatisfeita. E nos momentos menos bons da sua vida, lembrava-se da cruz que trazia consigo. A cruz de Viriato - a cruz da sua vida.

Os anos passaram. Os filhos foram-se criando e cada um seguiu o seu rumo. Uma família grande… mas havia dentro de si um espaço sempre por preencher.

Com 52 anos, Adérito começou a ter alguns problemas de saúde. E aos 54 foi-lhe diagnosticada uma cirrose hepática. Os médicos prognosticaram apenas alguns meses de vida. E aos 57 anos morreu de morte súbita – ataque cardíaco!

Fernanda ficou só. Só com os 2 filhos mais novos.

A filha mais nova era então, uma jovem com 15 anos de idade.

Fernandinha afeiçoou-se muito a essa filha e criou-se um grande laço afectivo. Eram mais do que mãe e filha – eram duas almas amigas, confidentes.

Havia muito cumplicidade entre as duas. E não eram 2 almas… eram uma só. Existia um diálogo muito aberto, franco e muito genuíno entre as duas.

Fez-se mulher a jovem menina.

Fernanda tinha ali uma amiga, uma confidente. A filha ouvia-a e consolava-a na sua dor. Sentadas na cama, Fernanda contava à sua amiga a sua história. Enquanto segurava a carta numa das mãos que tremia… e na outra apertava a cruz.

Naquele ano, a Primavera era mais florida. E os pássaros chilreavam mais de contentamento.

Fernanda chamou a sua filha e, como de costume, sentaram-se as duas na sua cama.

O sol irradiava a Primavera, os melros chilreavam e sentia-se o cheiro a flor de laranjeira do quintal.

Fernanda aconchegou-se junto da sua menina, pegou-lhe nas mãos… e, pela primeira vez, deixou-a tocar na cruz …“Tão bonita mãezinha, esta cruz!”

Fernanda tinha os olhos inundados de lágrimas e pediu então à sua filha que, um dia quando partisse, teria como missão guardar aquela cruz e fazer passar a mensagem que “o Amor é o mais importante da vida”.

Era um segredo das duas: o maior segredo da vida.

Passados alguns meses, a jovem moça começou a trabalhar no seu primeiro emprego.

Era uma central telefónica, numa empresa da Indústria automóvel.

Havia um enorme arquivo de listas telefónicas. De todo o país e do estrangeiro.

A primeira coisa que a moça se lembrou, foi procurar o nome do Viriato.

E assim o fez.

Encontrou 2 pessoas com o mesmo nome. E resolveu telefonar para o primeiro, que era da Trofa (arredores do Porto).

Discou o número e uma voz soou ”Bom dia. Faz favor de dizer.” Era uma voz cansada, um pouco arrastada, mas muito cordeal.

A jovem perguntou se era da casa do Viriato R. da Silva. E do outro lado soou uma resposta positiva.

A 2ª pergunta foi : “O nome Maria Fernanda de Jesus” diz-lhe alguma coisa?”

A voz era agora fresca e altiva “Maria Fernanda… oh Maria Fernanda! Onde está essa mulher?”.

A jovem falou que era filha de Maria Fernanda. Sabia que haviam sido grandes amigos na juventude. E que gostava de fazer uma surpresa à mãe, porque ela faria 69 anos dali a dois dias.

E assim foi.

No dia 30 de Maio, Viriato telefonou a Fernanda e marcaram um encontro.

Fernanda sentia-se muito feliz. O seu grande amor estava ainda vivo e finalmente iria reencontrar-se com ele. E, quem sabe, repor um passado perdido!...

O encontro fez-se.

E, aquele momento, que seria o maior momento da sua vida… tornou-se num sonho de grande desilusão. Aquele rapaz moreno, cabelo preto, magro, alto… era agora um velho homem de cabelo todo branquinho, gordo, encurvado e suportado por uma muleta. Homem doente e que trazia um saquinho à cinta, que lhe fazia ligação aos intestinos.

Para Viriato, a vida tinha sido muito madrasta.

Amou Maria Fernanda toda a sua vida. E cumpriu o juramento que fizera, em não casar com outra mulher. Tinha jurado amor eterno e assim seria até aos fins da sua vida. Ou até encontrar Fernanda.

A sua governanta, que foi também sua mãe deste pequenino, ficou ao seu lado a cuidá-lo sempre. Era ainda viva. Com oitenta e muitos anos. Alcoólica e muito doente.

Viriato tinha concluído os seus estudos superiores. Fora estudar para França e nunca mais tivera uma namorada.

O amor de Viriato era o mesmo. Pegou nas mãos de Maria Fernanda e beijou-as como há 50 e muitos anos atrás.

Embora ela também tivesse o cabelo branco, era uma mulher linda… pele branquinha e macia. Uma boca perfeita, com lábios e dentes lindos. Tinha olhos de menina e um sorriso de encantar. Os anos pouco a mudaram. E a alma era a mesma de menina.

Viriato amava Fernanda. Amava-a agora, mais do que nunca…

Por outro lado, Fernanda apercebera-se então, que amava um homem que ficou perdido na saudade dos sonhos que trazia.

Desiludida e triste com a ilusão dum amor envolto de lirismo e utopia… Fernanda rasgou a carta. Apenas deixou a Cruz.

As duas amigas continuaram a sentar-se na cama. Agora falavam da vida, das ilusões e desilusões. Dos amores e dos desamores. E, acima de tudo, do que é o Amor.

A cruz, tinha agora outro brilho, outro feitiço para ambas. Porque o amor sobre o qual agora falavam, não se configurava apenas na ilusão de 2 enamorados. Mas muito mais abrangente… no amor que une as pessoas e as faz felizes, pela partilha, pela descoberta e pela entrega de afectos. Que afinal, é o verdadeiro amor na vida…e que ambas descobriram naquela linda relação de mãe e filha.

Passaram poucos meses (6 meses).

Fernanda entrou pelas portas de urgência do Hospital. Uma embolia cerebral.

Ficou em estado de coma. E os médicos disseram que dali não voltaria mais.

E assim foi. Em dois dias o folgo da vida transformou-se em saudade.

E de tudo, de tudo que era uma vida… Apenas a cruz ficou.

FIM.


Já passaram dezoito anos, que a cruz saiu debaixo da gaveta do pichiché.

Desde esse dia, trago-a sempre comigo para cumprir o pedido de minha mãe.

Sei que estou a cometer um acto de grande responsabilidade. Porque estou a partilhar um segredo que era só de nós as duas.

Mas esta será de certo, a melhor forma de tornar a Cruz de Viriato viva.

Tantas das vezes nos iludimos, com amores que pensamos ter ou perder. Mas mais importante do que isso, são os sentimentos que são criados pelos afectos, na comunhão e na partilha com aqueles que nos querem bem.

Não devemos confinar a nossa felicidade a um único amor – a uma única pessoa.

O amor é como uma fogueira: dá calor para muitos lados. E chega a cada lado, sem tirar um pouco ao outro. E quantos mais lados tiver… maior se torna a fogueira.

Não importa a idade, não importa a raça, nem a cor… a vida só é verdadeiramente vivida, quando nela existe Amor.

E essa é a cruz que todos nós transportamos neste fado da vida.

Amem.


(Bem-hajas pelo amor eterno que deixaste semeado no meu coração)


Maria Cristina Quartas

Março 2010