domingo, 18 de outubro de 2009

A virtualidade nos afectos (Texto adaptado por Maria Cristina Quartas)

A paixão virtual é um estado alterado de consciência, em que a pessoa concentra as suas energias numa fantasia. Apaixona-se pelo sentimento, pela felicidade, pelo sonho, muito mais pela imagem virtual do que pela pessoa real.
Há que reforçar que na paixão não se vêem os defeitos ou os problemas referentes ao outro, vêem-se apenas o estado de graça e o prazer... essencialmente dos sentidos.
Principalmente nesses casos de paixão virtual, as pessoas apaixonam-se mais por si mesmas, pela sua capacidade de seduzir e de se envolver, do que pelo outro. Não estando em contacto directo com o outro, a paixão que acontece é apenas um reflexo: "eu apaixono-me por estar apaixonado", "eu apaixono-me por uma sensação" em oposição a "eu apaixono-me por alguém".
Virtualmente, não existem pessoas feias. Basta ser simpático, que a nossa imaginação já transforma o outro em bonito, agradável, sensual. A sensualidade está nas palavras, não nas atitudes reais.
Todas as mulheres são bonitas e sensuais e todos os homens são bonitos e carinhosos, e somamos no outro tudo o que gostamos, porque é isto que procuramos no outro. É por essa imagem que acontece a paixão. Apaixona-se pelo que o outro "aparenta ser", não pelo que é. E através da comunicação virtual é muito mais fácil preservar o ego e mostrar apenas o que se decide mostrar, escondendo aquilo que apenas o convívio “desmascara” e põe a nu. E aí, quando as máscaras caem, é que se conhece a verdadeira pessoa e podem acontecer as desilusões.
A diferença fundamental com os encontros reais é que é possível manter a imagem por mais tempo. Por outro lado, os encontros virtuais são muitas vezes tão intensos, podem ser tão ricos, que depois de alguns contactos entra-se geralmente numa intimidade que a maioria das pessoas não se permitiria nos contactos pessoais.
O facto de as pessoas não se exporem visualmente facilita ainda mais a abertura das emoções. Ao contrário dos encontros pessoais, em que a espontaneidade conta muito, nas mensagens via Internet a pessoa pode repensar as palavras, usar citações de outros que acha interessantes para a sedução ou elaborar o texto de forma a surtir maior efeito. A máscara, inevitavelmente, forma-se.
Na vida real, onde a aparência física é o principal chamariz (principal porque a “cotação” sócio-económica também e ainda tem bastante peso relacional) e só tem contacto com o lado animal, intelectual, depois com o emocional e afectivo... e só depois, às vezes, com o físico. Já nas relações virtuais as pessoas procuram e encontram companhia, cumplicidade, carinho, não importando muito a apetência para o sexo ou condição económica do interlocutor. Os limites físicos (corporais e de distância) não pesam.
Assim, atrevo-me a deixar dito que a internet é o local onde mais existe a possibilidade das "almas gémeas" se encontrarem, onde se abrem as emoções, onde se encontra sempre carinho e aceitação. Nunca foi tão fácil aproximar-se das pessoas. As "amizades" surgem de um dia para o outro, basta estar aberto a elas.
No entanto, algumas pessoas aproveitam-se do anonimato para criar uma personagem, ou seja, mostrarem-se conscientemente diferentes do que são.
Esse diferente nem sempre quer dizer uma mentira: muitas vezes a pessoa mostra-se como gostaria de ser, mostra o seu lado reprimido: o tímido transforma-se em eloquente, o feio em galã, o velho em jovem, o gordo em elegante. Embalada pela fantasia, a pessoa vende uma imagem ideal, a qual, enquanto está travestido, chega a acreditar ser. Este acaba por se tornar o principal motivo das decepções no momento do encontro pessoal: cria-se uma expectativa de que o outro seja aquilo que eu fui construindo no meu imaginário, por aquilo que eu fui apreendendo (ou que quis apreender), essa imagem nem sempre corresponde à realidade ou raramente corresponde à verdade.
Essa imagem ideal também pode ruir antes do contacto pessoal, por causa de uma "fofoca", ou de pequenos problemas de relacionamento on-line. O problema maior, em geral, não está na pessoa que transmite a sua imagem, mas na que gera falsas expectativas…
Contudo, o impensável também acontece, a paixão de uma via pode ser compartilhada e assumida por inteiro pelas partes, e a verdade ser mais "verdadeira" que a fantasia ou a ficção. A paixão pode tornar-se simplesmente em sentimento sólido e ultrapassar o inicialmente possível, pode encontrar terreno fértil no interlocutor e cultivar um significativo amor, ou uma sólida e apaixonante amizade. Não é o facto de ser inicialmente virtual e encaminhada num só sentido que impede, corta ou reduz a necessária vontade de amar e ser-se amado, pois esta função faz parte integrante dos novos conceitos de necessidades básicas de todo o moderno ser humano.
A fantasia, embora em diferentes graus faça parte do jogo da sedução, e consequentemente dos afectos, estimulada pela necessidade, induz os actores a partilharem mais do que simples desejos, imagens ou realidades, mas a trazer um contributo objectivo para uma relação que mesmo fortuita e fugaz, não deixa de satisfazer as necessidades de cada um em particular e dos dois no seu pleno. A fantasia é por isso o rastilho que, quer na internet, quer na vida real, faz explodir corações de amor ou ódio. E assim define a carga dos afectos, positiva ou negativa.
E se assim é, então, a vivência fantástica de um EU ou de um TU, necessariamente terá de partir da fantasia, que sendo ela subjectiva e por isso de alguma forma virtual, contribuirá para acalmar os corações e apagar muita da solidão que os atormenta. A troca de afectos funcionará, por isso, sempre nos dois sentidos: dar/receber e vice-versa.

Maria Cristina Quartas
Outubro/2009

(Do original: Leila Urioste Rosso “ O Perfil dos Usuários da comunicação Mediada por Computador: uma abordagem psicológica”, Brasil 2005.)

3 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito!
Ana

Zé Manel disse...

Parabens Cristina
Cada vez mais me surpreendes com as tuas reflexões.
Zé Manel

paulofski disse...

E no encanto dos sentimentos partilhados e das palavras recebidas o imaginário solta-se vadio nas teclas.

Engraçado como também senti essa "paixão" no mundo virtual, principalmente nos blogues. Na descoberta, na empatia recebida, nas expectativas criadas e mais tarde confirmadas quando fui conhecendo pessoalmente quem do outro lado me correspondia, novos e importantes amigos.

Gostei bastante de ler Cristina.

Paulo