Foto de MCQ
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18 de Setembro 2010
Era sábado. Um sábado de um terceiro fim de semana de Setembro.
Naquele dia acordei cedo. Mais cedo do que habitualmente.
Tinha que organizar a minha vida durante a manhã, para estar disponível para o trabalho com o meu amigo M.. Trabalharmos no nosso livro “A Caminho de Santa Bárbara”.
Na hora marcada, M. chegou. O livro estava quase pronto, mas ainda faltavam alguns arranjos gráficos, escolha de fotografias, um ou dois textos meus e alguma poesia que ele gostaria de escrever, sobretudo acerca da viagem de comboio pelo Douro até Freixo de Numão.
Sentia-me feliz. Sentíamo-nos felizes, porque estávamos a fazer um trabalho em conjunto muito bonito. Partilhávamos a motivação que sentíamos e aqueles momentos de encontro eram, de facto, mágicos. O livro agora já tinha forma, conteúdo… estava praticamente pronto. Já se via em concreto o que tinha sido apenas um sonho, um projecto.
15h17. Fechei a porta da rua. E fui a correr à janela da sala dizer-lhe adeus, enquanto M. sorria acenando.
Sozinha com o meus pensamentos, reflectia o quão importante é termos um amigo com quem partilharmos o sentir da nossa alma, numa comunhão plena de sentimentos puros, sinceros… como se naquele momento as duas almas fossem uma só.
E enquanto olhava o céu e as serras de Valongo no horizonte, sentia-me feliz por me entender desta forma de sentir a amizade e ter o previlégio de ter assim um amigo.
Imbuída num espírito de serenidade, alegria e afectos veio-me ao pensamento, (ao olhar as serras de Valongo), as Mós. E associei o meu estado de espírito ao que sentia quando olhava aqueles montes, que como dizia o meu amigo “ancas de virgem/gigante deitado…” e me transmitiam belas sensações de leveza e de serenidade.
E foi nesse preciso momento que me lembrei que, naquele dia, as Mós estaria em festa (festas em Honra de Nossa Senhora da Soledade).
16h00. A vontade era imensa de sentir a Aldeia. Abraçar os primos, rever amigos.
Calcei umas sapatinhas. Meti duas ou três coisas num saco e saí pela porta fora em direcção à estação dos Comboios de Ermesinde.
17h15 no relógio da Estação. A locomotiva aproximava-se lentamente e era anunciado no altifalante: “Está a dar entrada na linha número três o comboio procedente de Porto-Campanhã com destinho ao Pocinho.”
O comboio parou na gare e subi a carruagem.
Entrei na penúltima carruagem que ia quase vazia.
Tudo aquilo era uma aventura para mim. Mas sentia-me confiante e empolgada, pois ia fazer a viagem de comboio, para sentir de perto o encanto daquela viagem e poder partilhar com o meu amigo tudo aquilo que ia ver e sentir.
Chegada ao Marco de Canaveses (18h21) o comboio parou. E foi aí que decidi pegar num bloco e numa caneta para começar a descrever esta minha aventura.
À minha frente, uma senhora de meia idade dormitava, enquanto deixava cair sobre o regaço o terço que trazia nas mãos e ia rezando com as mãos molengonas cada pedra do rosário.
Pela janela ali ao lado o rio Douro começava a aparecer.
A paisagem começa a ser agora o cenário do filme que eu ansiava ver.
Pedi licença e abri a janela.
O rio Douro cada vez estava mais perto e eu sentia-me a transportar para os encantos das águas serenas, que ora se mostravam verdes, ora azuis, ora cor de prata, ora cor de ouro… o rio mudava de forma, de cor, e em cada recanto via pormenores encantados que me faziam suspirar de plena felicidade.
M. ia comigo no pensamento. E cada foto que tirava era para lhe mostrar, para ele ver a magia que me criava todas as sensações exuberantes!
O terço estava a agora pousado sobre o regaço, e vi no rosto daquela mulher um lindo sorriso.
A conversa começou a fluir. E a viagem tornara-se agora mais agradável.
Marília sorria enquanto me olhava no meu entusiasmo das fotos que tirava, e nos murmúrios que fazia: “Que lindo!”, “Ai que que sonho!”, “Ai se o M. aqui estivesse!”…
Começamos a partilhar a beleza que ambas assistíamos enquanto comentávamos a beleza do Douro: “O Douro é mesmo lindo! Parece um espelho, tão límpido e tão brilhante!”
Assim eram os seus olhos: muito azuis e com um brilho de felicidade. O motivo do Douro fora apenas o início para uma longa conversa. Marília ia falando de si, das viagens que fazia tantas e tantas vezes sozinha.
O diálogo começava a ter conteúdo, como se aquele momento fosse o último dos nossos encontros, e facilmente nos sentímos próximas, como se fossemos amigas de longa data.
A viagem agora era a três. Pois, enquanto falava com Marília, observava o rio e ia telefonando ao M., partilhando a emoção que sentia naquilo que via.
Marília ia sair em breve. Pediu-me o contacto e, com os olhos brilhantes, disse-me que queria ser minha amiga.
O comboio parou na gare da Régua.(19h09)
Marília abraçou-me e, com os olhos cheios de lágrimas, disse-me que a coisa mais bela desta vida era ter amigos verdadeiros e conhecer pessoas especiais.
Desceu do comboio e ficou na plataforma da estação com a mão levantada acenando, enquanto dizia: “Até breve” e os seus olhos resplandeciam de emoção.
Aos poucos e poucos, a luz do dia ia fazendo sombras das montanhas. No rio desenhavam-se formas surreais dos reflexos das encostas, do céu e das sombras.
Tudo me parecia surreal mas dum encanto tal, que preenchia o silêncio que se fazia e preenchia a ausência daquela minha companhia.
As montanhas começavam agora a tomar apenas forma de relevo e desenhavam os seus contornos bem definidos no céu que, lentamente, se ia assombrando num azul turquesa, que se reflectia no rio… e que me tornava deslumbrada e confusa, pois não sabia se era o céu ou o rio que reflectia, ou se as montanhas eram as sombras no rio ou se os relevos que no céu se desenhavam.
Os relevos eram negros, o rio um azul turquesa brilhante e o céu da mesma cor do rio, crivadinho de estrelas, de todas as formas, tamanhos, a cintilar duma forma orquestral numa sinfonia encantada da Natureza.
Os cheiros eram intensos. O cheiro da terra misturava-se com o cheiro do rio. Num perfume que embalava as flores do monte, onde o cheiro do restolho era o sustento de toda aquela fragrância.
A serenidade, a paz, pulsava na sua forma mais pura e intensa do céu, do rio, das sombras, das montanhas.
No silêncio vibrava a mais bela sinfonia que embebecia todos os meus sentidos.
No meio do nada, naquele paraíso, uma pequenina estação surgiu – Vesuvio! (20h17)
Liguei ao M. novamente e descrevi o que sentia e o que via com todos os sentidos do corpo e da alma.
M. ouvia silenciosamente o que com ele partilhava. E, num tom de voz doce e emocionado, retorquiu: “Só quem ama a Natureza e a sabe escutar, a vê como a tu a descreves!”.
20h23. Desci o comboio – Freixo de Numão.
A Estação estava deserta. O comboio deu partida em direcção ao Pocinho e, do outro lado da linha, a minha prima Alice Diogo esperava-me com a sua filha Sãozinha (que já não a via há mais de 35 anos) e o marido Abreu.
Com o coração cheio de emoções e recordações antigas, seguimos em direcção às Mós, ao encontro da Festa da Nossa Senhora da Soledade.
Maria Cristina Quartas
Nota: "Rio de Ouro" foi o último poema do Prof. Dr. Mário Anacleto
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